segunda-feira, 24 de março de 2008

Às Escuras

Era o esperado dia do encontro. Aprumara-se todo. Estava impecável. Um elegantíssimo rapaz. Inspiraria confiança no mais exigente pai de família. Calma. Precisava primeiramente conhecer a noiva...

Conversaram muito. Longas prosas, madrugadas inteiras contando bravuras, peripécias e experiências (nem todas lá muito boas, mas sempre adocicadas para ficarem com uma aparência melhor) de sua vida passada. Como não gostava de ficar muito tempo sem um cara a cara, isso não passara de uma semana. Era o suficiente, se valesse a pena não deixariam de se falar e, quem sabe, fazer outras coisinhas mais.

Estava muito empolgado. Vira algumas fotos de sua “quase” namorada e ela era uma tentação. Alta, esguia, de corpo bem feito, olhar meigo e sempre sorridente. Se aquelas fotos fossem reais, e não modificadas por programas de computador, a descrição dada por ela combinava perfeitamente com elas. A extrema autoconfiança em seu tom de voz ao telefone, sem parecer arrogante, a voz tranqüila e sincera, tudo levava a crer que não estava mentindo.

Apesar disso, uma pontada de desconfiança ainda vigorava, afinal, já estava vacinado para esses encontros. Por mais que tivesse decepcionado-se inúmeras vezes (a da garota gorducha com aparelho nos dentes que se descrevera como sendo uma sílfide, a da senhora que se dizia passar por adolescente...), não desistira de encontrar a sonhada alma gêmea na vastidão virtual. E a internet, não podia ser injusto, também já lhe proporcionara companhias bastante agradáveis. Embora nunca nenhuma outra o tivesse deixado tão entusiasmado quanto esta. Estava quase na hora de sair.


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A menina ansiosamente escovava os cabelos negros. Via-se que era vaidosa. E tinha uma ânsia no olhar, um brilho malicioso que destoava um pouco de sua figura angelical.

Precisaria sair escondida dos pais (de novo!), mas não havia outra saída. Quando (e se) descobrissem, seria tarde. Eles viviam alertando-a sobre o perigo de encontrar alguém que pudesse fazer-lhe mal. Fazer mal a ela! Que piada. E era obrigada a suportar esses monólogos, acalmá-los, pedir desculpas... Estava tornando-se cada vez mais difícil ouvi-los calada, fazendo promessas que não tinha a menor intenção de cumprir. A mãe era a mais irritante, dava-lhe nos nervos com aquela seu ar de autopiedade, sempre lacrimosa e por vezes histérica. Sabia que se não fosse pela má-influência daquela sonsa, o pai certamente a deixaria sossegada. No início daquela dura convivência, ele a apoiava e justificava suas saídas, dizia sempre ser coisa de gente nova, uma fase, argumentava que naquela idade todos lutavam por maior liberdade e que contrariá-la seria pior. Qual nada! A megera ficara ainda mais atiçada e passara a persegui-la com maior empenho. Sua intuição estava certa, havia um certo ciúme por parte daquela que se intitulava sua maior protetora. A velha notara a afinidade entre os dois e a partir daí fora sua inimiga ferrenha, apesar de tentar disfarçar. Mas ela já estava acostumada com esses e outros disparates e tramas complicadas. Inevitavelmente ia parar no olho do furacão e ainda como causadora dos infortúnios familiares.

Se bem que esse casal ultrapassasse os limites da sanidade muito antes da sua chegada. Eram as pessoas mais ignorantes com que já tinha lidado. No atual estágio de convivência, queriam que ela se mostrasse eternamente grata por terem-na recebido, uma desgarrada ovelhinha (!), no seio de seu lar acolhedor. Acolhedor para eles era sinônimo de lavagem de roupas, louças, tudo a sua volta deveria estar brilhando e, obviamente, a incumbida da maior parte desses prazerosos afazeres era ela. Agiam como se fossem seus donos, sempre com uma lista de deveres e obrigações. Quanto aos direitos, foram deixados de lado como algo pernicioso para sua criação. Quando tentara argumentar sobre eles, com seu modo mais carinhoso, simplesmente ignoraram-na, olhando-a como se estivesse completamente louca. Reciprocidade era uma palavra que não constava do vocabulário dito amplo dos seus ilustres educadores. Mera fachada. Eram uns boçais.

Enfim, teria que suportar aqueles rançosos por mais algumas semanas. E daria um jeito de virar-se, nem que para isso precisasse retorcer-se qual rabinho arrancado da lagartixa. E suportaria também o novo garoto, a quem deveria chamar “irmão” e tratar com carinho e consideração. Só lhe faltava essa, trocar fraldas e dar leite para um pirralho.

Mas dessa vez seria bastante cautelosa e esperaria o momento exato para raspar-se dali. Até lá, era ser o modelo da graça e bom comportamento. Não podia levantar suspeitas novamente. Já enfrentara situações lastimáveis e, em meio ao desespero gerado por elas, quase pusera tudo a perder. Amadurecera. Sabia que era cedo para partir.

Seria então a rainha da obediência ilimitada. Com exceção, é claro, da noite. Acima das aparências estava a sua alimentação. Em razão dela estava ávida pelos acontecimentos que viriam a seguir. Podia farejar as novidades mesmo por trás da agourenta vidraça, com seu cortinado que em algum dia de um passado distante fora cor-de-rosa ou assemelhado. Por mais que se lavasse aquela coisa encardida, não havia como voltar à cor original.

Afastou esses pensamentos de “lavar, limpar” de seu cérebro já admoestado o bastante por varreduras, esfregaduras, sempre na aguda e constante voz de sua mamãe que a cada dia tornava-se mais parecida com a madrasta de Cinderela. Só faltavam as duas irmãs. Se bem que foram substituídas por um bebê chorão e exigente. Uma troca nada vantajosa. Talvez existisse um príncipe encantado para trazer-lhe alento. Teria que poupá-lo nem que fosse para ouvir um pouco mais das suas queixas de órfã em meio ao naufrágio. Estava misturando as histórias... Não gostava de envolver-se demais em suas próprias fantasias.

Ao menos ela deveria manter os pés no chão do real. Por outro lado, a voz do príncipe era tão entusiasmada e vigorosa que seria bom perder-se em um devaneio para variar.

Estava particularmente feliz e corajosa por conhecê-lo. Já podia adivinhar seu semblante. Engraçado era ele, parecia uma criança, enamorando-se por uma completa desconhecida. Ele não possuía um milésimo de seu dom divinatório e mesmo assim estaria lá, seu instinto aguçado por um misto de esperança e curiosidade.

Adorava noites como essa, em que o fascínio a atraía suavemente. Sentia-se viva e cintilava de expectativa. Como há muito tempo, um sentimento que parecia esquecido a tomara inteira. Era maravilhoso! Sentiria a quietude e o aconchego, ainda que momentâneos, que só certos braços foram capazes de dar-lhe. Pensar Nele ainda causava um estremecimento de saudade.

Deu uma última olhada em suas formas. Estava deslumbrante, até naqueles trapinhos que atualmente lhe davam para vestir-se. Como se pudessem com isso apagar-lhe a beleza extraordinária. E a intenção era somente essa, torná-la ainda mais infeliz naquela casa.

Saiu, a contragosto, pela janela. Que lugar-comum esvair-se desse jeito! Irritava-a sobremaneira agir de forma tão previsível. Ao menos seria por pouco tempo. Sua paciência estava quase no limite, a recém adquirida família em breve conheceria o sabor da despedida especialmente programada para ela. E então, adeus papaizinhos e nenê birrento.

A noite estava mesmo encantadora. A brisa do mar trazia um alívio abençoado para seu confinamento. A lua enorme, os casais enamorados, era o cenário perfeito. O céu cheinho de estrelas. De quando em quando uma pessoa sozinha. Não precisaria desses desencaminhados. Não dessa vez.

Buscou não aprofundar-se nos pensamentos alheios, não queria estragar o clima. Foi-lhe impossível. Era pena, mas a realidade sombria apoderou-se de seu espírito rapidamente. Os casaizinhos tornaram-se particularmente insossos. Beijos, abraços e juras de amor sem significado algum. Ao menos sentiam-se sinceros ao fazer declarações. Já os que andavam em grupos, com suas recíprocas demonstrações de amizade e respeito, acabavam com qualquer ilusão. Eram traiçoeiros e pestilentos, uns almejando se dar bem às custas dos outros, enquanto procuravam provar qual era o melhor, mais bonito, inteligente ou bem pago. Quanta hipocrisia. Gostaria de tapar os ouvidos da mente. Sabia dos que evoluíram a tal ponto. Ela ainda alcançaria esse estágio e não seria mais atormentada pela generalizada loucura dos homens. Uma loucura tão previsível... Necessitava acalmar-se para não desviar sua atenção do que importava. Exercitaria o egoísmo.

Vislumbrou o alvo. Sentado em um banquinho frente às salas de cinema. Ela nem precisaria da descrição das roupas. Reconhecera-o assim que estava ao alcance de seus sentidos.

Os pensamentos dele eram igualmente fortes. E a expectativa daquele homem a embriagava por antecipação. Fazia-a recordar-se imenso Daquele que conhecera. A semelhança era mesmo incrível, tanto na aparência física quanto nos sentimentos. Eram nobres e belos! Resistiu com esforço a atirar-se sobre ele e dizer o quanto esperara pelo reencontro.

Despertou daquela lembrança vívida e procurou ater-se ao presente. Só abriria portas à decepção se continuasse naquele sonho antigo. Ninguém jamais se igualaria a Ele. Que não pudera existir no mundo em que ela agora se encontrava, completamente sozinha.

Aproximou-se demonstrando simpatia e leve surpresa. Com um meio sorriso no rosto pálido inquiriu com ar inocente: - É você?

Em resposta, os olhos do homem apertaram-se de satisfação.

Logo estavam de mãos dadas e perdiam-se entre outros casais apaixonados.

Ela quase desistiu de seu intento. Ou melhor, quase modificou-o. Não viera à toa. O máximo que poderia conseguir seria dar-lhe uma chance. Aquela alma parecia-lhe fresca, nova. Merecedora da oportunidade. Mas não deixaria escapar-lhe. Tinha fome. A decisão deveria ser rápida. As palavras e atos seguintes seriam cruciais. Um erro a essa altura significaria a própria destruição, mesmo que longínqua.


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Ela era ainda mais estonteante do que imaginara. Nem as fotos faziam jus aquele encanto. E via-se claramente que gostara dele! Era como tirar a sorte grande.

A conversa fluía naturalmente. Como se já fossem amantes de longa data, abraçaram-se e beijaram-se, ele nem saberia dizer exatamente de quem partira a iniciativa. Fora ele que se inclinara sobre aquela boca carnuda e quente, ou o contrário? Esqueceu completamente dos ingressos para o filme e envolveu-se comovido nos desgostos pelos quais a pobrezinha vinha passando. Devia ser esse o motivo da preocupação em sua voz sensualmente infantil.

As horas fluíram e só por um momento ele temeu. Pareceu notar uma ironia contida naquelas ternas palavras. Num relance, uma maldade fria surpreendeu-o em meio a um olhar apaixonado. Só podia estar delirando. Crueldade certamente não combinava com aquela senhorita tão indefesa. Estava tomado pela paixão e o medo de que algo pudesse dar errado o fazia sofrer alucinações. Enfiou seus dedos ávidos naquele emaranhado de cabelos volumosos e abandonou definitivamente suas dúvidas. Terminara sua busca. Seria o homem mais feliz e realizado do Universo.


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Com tristeza, ela percebeu que não poderia viver uma mentira. Ele não substituiria seu Amado. Era fraco. Apenas outro entre os amaldiçoados que cruzavam seu caminho. Não perderia seu tempo precioso com um perdedor vulgar. Só podia lamentar-se e arrastá-lo para longe daquela pequena multidão. E agir rapidamente. Não queria fazê-lo sofrer. Lembrava-O por demais.

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