segunda-feira, 24 de março de 2008

Por Entre Sombras

O céu avermelhava-se. Por fim poderia dar seu costumeiro passeio. Na escuridão sentia-se ainda mais à vontade. Os muros das redondezas, os perigos, os cães mansos e os furiosos, a roda de amigos, as gatas que entrariam no cio em breve, traziam-lhe uma tranqüilidade amistosa.

Assim a vida lhe corria sem grandes percalços. Seus donos eram cuidadosos, tratavam-no com carinho e atenção. Ronronava feliz no colo macio e aconchegante daquela que o acolhera ainda filhote.

Porém, gradualmente as coisas foram se modificando. Já não recebia tantos agrados. Não sentia mais longos dedos acariciando-no. Pequenos gestos de apego foram sendo abandonados.

Não demorou a perceber o motivo. Um novo humano aos poucos tomava-lhe o lugar. Antes mesmo de nascer, já fazia-lhe a realidade ingrata. E seria exatamente como nas histórias que ouvira inúmeras vezes. A criança puxar-lhe-ia o rabo, arrancar-lhe-ia os pelos, enfim, tornaria sua existência insuportável.

Segundo os mais experientes, o melhor seria procurar outra moradia. Mas ele recusava-se a abandonar aqueles que tinham sido seus amigos e provedores por tanto tempo.

Até que aconteceu o que achava mais improvável. Percebera olhares ressabiados, discussões acaloradas, algo de estranho estava acontecendo. Não demorou muito para, ao regressar de uma de suas saídas noturnas, encontrar portas e janelas trancadas, com o claro intuito de impedi-lo de entrar.

De nada adiantaram seus apelos, miados lamuriosos e arranhadelas. Não o queriam mais ali.

Sem opção, partiu. Com tristeza e revolta, sem entender a injustiça para com ele que sempre se mostrara grato, ia cabisbaixo. Deu de encontro com um enorme e gordo felino, peludo, daquela raça um tanto pedante, um gato persa. Deitado tranqüilamente sobre um muro, perguntou-lhe qual o problema que o fazia tão desolado.

Não era de dar ouvidos a esses comentários inoportunos, mas estava tão triste que acabou por desabafar. Contou-lhe sua desdita.

O gatão explicou-lhe então o motivo por trás da decisão dos seus donos. Era o medo de que transmitisse uma doença para o bebê que esperavam. Os humanos eram muito ressabiados quanto a isso e era comum que agissem de tal forma. Porém, disse-lhe possuir a solução. Bastava que seguisse seus conselhos para que o mal fosse desfeito. Então poderia retornar sem receio, seria afagado e amado, teria uma vida de rei, até superior à de outrora.

O infeliz gato ouviu então o que precisaria fazer. Deveria encontrar um meio de infiltrar-se na casa. Para isso seria necessário esperar uns dias, até que seus antigos donos acreditassem que livraram-se dele. Não seria difícil então, pois estariam com a atenção voltada para seus problemas cotidianos.

O peludo companheiro falava-lhe com muita convicção e seriedade. Parecia realmente empenhado em auxiliá-lo.

Prontificou-se então a agir como o outro havia explicado. Já ia a meio do caminho quando raciocinou melhor. Não havia porque prejudicar àqueles que um dia foram bondosos para com ele. Mesmo sabendo que estaria abandonando uma tradição, desprezou os conselhos recebidos e dobrou uma rua na direção contrária à sua antiga morada. Um forte sentimento de alívio o invadiu.

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