segunda-feira, 24 de março de 2008

Devoção

A pequena embarcação velozmente cortava o mar tão azul que mal se distinguia do céu. O jovem ia solitário e confiante, certo de que conseguiria. Mataria o demônio que assombrava seu vilarejo há tantos anos que as lembranças perdiam-se na memória dos anciãos. Ele era o único que treinara o suficiente. Desde menino, em fraldas, singrava os mares acompanhado dos outros, em diversas viagens com os pescadores e seu pai. Saudade e orgulho da família, tão simples e sábia, fizeram vir lágrimas a seus olhos. Mas aquele não era o momento para sentimentalismo. Seria fiel a seu objetivo.

Logo adiante um grupo de golfinhos divertia-se nas ondas calmas. Daí a pouco ele quase podia tocá-los. Pareciam espertos mas inocentes naquela imensidão anil que continha tantos perigos. Brincaram mais um pouco e foram embora emitindo seus sons característicos.

O rapaz partira antes do amanhecer. Despedira-se de todos, ouvira com atenção as recomendações apesar de já sabê-las de cor. Recebera a benção da mãe, preocupada como só as mães conseguem ficar. Seu pai olhara-o firmemente e sua voz soou dura e fria, mas o moço sabia que ele só tentava esconder a comoção que sua partida causava. Confiava na preparação, astúcia e coragem do filho e mesmo assim sentia-se emocionado. Afinal, ele fora o escolhido entre tantos por suas técnicas e bravura.

Afastou as lembranças e reparou na posição do sol. Agora já navegava há horas e o sol ao alto indicava que seria por volta de meio-dia. No horizonte nada avistava. Para quebrar a solidão apenas um pássaro que já o acompanhava há um bom tempo. Parecia torcer por sua vitória. Com ânimo renovado acelerou o pequeno barco. A qualquer momento o monstro poderia surgir e as armas estavam a postos.

Avistou o que parecia ser uma ilhota. Não sabia da existência dela, não constava dos mapas. Curiosidade e também a oportunidade de refugiar-se do calor do sol a pino fizeram com que tomasse aquela direção. Poderia recuperar as forças, sabia que precisaria delas mais adiante.

O estranho é que viu formas assemelhadas a pessoas acenando para ele. Era absurdo ali, no meio do oceano! Esfregou os olhos incrédulo, mas elas continuavam presentes, minúsculos pontinhos negros movendo-se ao longe.

À medida que aproximava-se, via nitidamente que eram reais, alongadas silhuetas, e sorriam! Magérrimos, o sorriso lhes tomava toda a face. Incrível que nunca os encontrasse anteriormente, nem àquela ilha, que não era tão pequena quanto parecera à primeira vista.

Solícitos, os habitantes vieram ajudá-lo a alcançar a terra firme. Saudaram-no e rodearam-no. Puseram-se a dançar e cantar à sua volta. A linguagem que utilizavam era totalmente desconhecida para ele. Traziam instrumentos exóticos e pareciam realmente amistosos.

Em seguida, trouxeram-lhe comida e água. Aceitou de bom grado, estava sentindo-se até importante com tantas manifestações de apreço ocasionadas por sua chegada.

Súbito, uma bela moça abraçou-o. Tinha a pele como seda, tão macia que sua vontade era a de deitar-se naquele aconchego de seios e pernas, mergulhar no perfume exalado pelos lustrosos cabelos. Essa mulher era diferente dos outros, não era tão esbelta, parecia talhada pelas mãos de um grandioso escultor.

Ela conduziu-o a uma casa rústica porém aconchegante. Era como se estivessem esperando-o o tempo todo. A jovem mulher não o deixava sozinho.

Trouxeram-lhe uma bebida forte e refrescante que o deixou inebriado de prazer. Adormeceu feliz, nos braços daquela que grudara-se a seu corpo como se a ele pertencesse. Foi um sono agradável e tranqüilo. Acordou ainda envolto naquele mistério, era como se tivesse encontrado o paraíso. Como se sua vida começasse verdadeiramente ali, aquele fosse seu lar, uma ilha maravilhosa em que todos eram felizes e agradecidos pelo que a natureza lhes oferecia.

Os dias foram passando e ele habituou-se a sua nova vida. Em breve queria formar uma família e fazer parte daquela harmonia, distante de preocupações.

Esquecera-se rapidamente da promessa que fizera. Seu passado parecia tão distante... Logo foi completamente apagado de sua memória.

Os que deixara para trás sentiam a tristeza pela perda daquele que partira para salvá-los do monstrengo que tornava-se cada vez mais violento e pavoroso. Ainda esperavam o retorno do jovem, mas o tempo lhes trouxe quase a certeza de que ele fora mais uma vítima daquele ser inclemente. Já nem tinham mais coragem de aproximar-se do mar. Abandonaram aquele lugar que só lhes trouxera desgraças.

Somente seus pais e sua noiva permaneceram. Os idosos, tomados pelo desgosto, adoeceram. A moça esforçava-se por dar-lhes alento e cuidava deles com todo o zelo. A mãe ainda rezava e implorava pela volta com vida de seu único filho. Seu pai perdera a consciência e já não havia mais o que fazer por ele, em dias faleceria. Já sua noiva, cansada, chorava todas as noites e recordava os momentos compartilhados, a infância passada lado a lado, os projetos para um futuro livre do sangue derramado pela demoníaca criatura. O amor a fazia ter esperança e dava-lhe confiança para continuar à espera.

Nenhum comentário: