segunda-feira, 24 de março de 2008

Conflito

O padre recolhe-se após a missa. Sua missão tornava-se cada vez mais dura. As pessoas já não lhe davam a atenção de outrora. Era como se somente seus corpos comparecessem, cumprindo a obrigação dominical, aceitando resignadamente esse dever para escapar das agruras da eternidade que esperavam pelos pecadores. Esqueceram-se do sangue derramado por Cristo, engoliam a hóstia como se nada significasse, toda a simbologia mitigada.

Isto lhe atormentava a alma e seu coração comprimia-se aflito. Não só pelos falsos fiéis como pelas criaturas que vagavam sem orientação, sem chance alguma, sem alternativa senão sucumbir ao chamado do demônio. Não somente o demônio de chifres, mas sim aquele muito pior, o maldito dentro de cada ser, o qual à menor facilidade imperava soberano e viscoso, insidiosamente proliferando o mal por toda parte. Trazendo miséria, ruína, revolta, a violência, desesperança e total descrença no futuro.

Seus sermões outrora inflamados esvaíam-se ante a falta de entusiasmo geral e principalmente a nulidade de respostas por parte dos que o ouviam.

Com esses pensamentos obscuros tornava-se difícil deixar a igreja e descansar. A garoa fria e a escuridão pareciam reforçar suas idéias pessimistas como indícios de que as coisas não iam nada bem. Refletia ainda sobre a tolice de se torturar dessa forma, mas não podia evitar. Era como se pequenas criaturas envolvessem-lhe o cérebro com os problemas com que teria que lidar.

Estava prestes a fechar a igreja quando percebeu um vulto, em meio às sombras. Vinha como se flutuasse. O jovem pároco tomou-se de um sobressalto por instantes, pois a brancura total daquele ser parecia destoar completamente do cenário, exceto talvez pela cera derretida das velas. Tal qual uma assombração. Com a aproximação da criatura que na realidade apenas caminhava lentamente, percebeu tratar-se de uma pessoa, uma mulher, alva, pálida, coberta por um véu branco, tal o motivo da semelhança com um espírito. Assaltou-lhe a idéia de que essa pessoa vinha especificamente para contribuir com aquela perturbação já existente em seu interior. Meneou a cabeça. Estava mesmo exaurido. Por isso tinha sido levado pela surpresa daquela presença e sua imaginação completou a ilusão.

Com voz serena ela pediu para se confessar. Ele estava a ponto de avisá-la de que aquele não era o horário adequado. Porém, uma espécie de intuição o fez fazer-lhe um gesto para que se aproximasse. Afinal, ainda podia dar um pouco mais de si naquele que havia sido um dos seus dias mais penosos. E quem sabe aquela mulher trouxesse uma visão mais positiva das coisas, em vez do mau agouro que pressentira ao vislumbrá-la.

- Quais os teus pecados, para que me procures tão tarde da noite? – perguntou ele com sua voz de barítono.

Ela descobriu então o rosto, e que Deus o perdoasse se já havia enxergado tamanha beleza refletida num ser, e sentido naquele rosto uma expressão de tranqüilidade que lhe dava ganas de agarrá-la junto ao corpo e tomar para si um pouco daquela paz. Tentou não deixar transparecer seus sentimentos quando a figura envolvente finalmente respondeu:

- Venho porque sei que temes por teu rebanho. Devolver-te-ei a confiança perdida.

- Estás errada, filha. Minha fé nos seres nunca foi abalada, como criações divinas que são. Porém, preocupo-me. É parte da minha sina e do meu dever para com o senhor. – disse ele um tanto abruptamente. Mas, mesmo estando atordoado, havia sinceridade em suas palavras.

- Então não temas. Siga comigo. Eu te mostrarei a verdade.

- Para onde? – sua voz soou trêmula, o que o desgostou. Por que perguntara algo tão absurdo? De que importava? Ele não poderia sair por aí sem rumo com uma desconhecida, por mais intrigante que esta fosse.

- Eu te mostrarei. – repetiu simplesmente a etérea figura.

Foi com passos indecisos que a seguiu. Não podia resistir. A verdade é que ela pudera ler sua mente, soubera de suas ansiedades e isso era era mesmo motivo suficiente para que a acompanhasse.

Ela o conduziu a uma carruagem e, sem que tivesse feito nenhum sinal, partiram. O condutor não se manifestou em momento algum, nem para ajudá-la a subir. Seguiram por caminhos tortuosos. Várias vezes abrira a boca para perguntar o que estavam fazendo afinal, pois não pareciam chegar a lugar algum. Preferiu calar-se e deixar que aquela excêntrica aventura tomasse seu rumo.

Finalmente chegaram a uma casa. Parecia completamente abandonada. A porta encontrava-se aberta. Assim que desembarcaram, a carruagem sumiu em meio à densa floresta.

Entraram. Havia apenas uma tosca mesa e algumas cadeiras empoeiradas. Realmente ninguém poderia viver ali. Algumas lamparinas iluminavam fracamente o local.

- E então? Por que precisamos vir até aqui?

A resposta veio na forma de um beijo. Sentiu na espinha um calor que o fez estremecer e cair nos braços da estranha figura. Mas olhando aquele rosto tão doce suas dúvidas se dissiparam. A salvação teria sido o caminho do amor. E ele o perdera antes mesmo de começar a procurá-lo. Em nome da fé, tornara-se cego.

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