segunda-feira, 24 de março de 2008

Miriam

Tornava-se impossível pensar com aquele calor asfixiante. O sol conseguia penetrar em cada beco da favela. Um cheiro pútrido empestava o ar.

Os moleques brincavam de pistola. Um três oitão pesado. AKs. Colts. Um tiro no olho do gato. Um tiro no olho do moleque. Ficou conhecido. Pisqueta.

- Sujou. Os caras.

Naquele mormaço do meio-dia e tantas agonias, a cama tornava-se pesada. Tanto amor, tanto sufoco, tantas maravilhas. Quase se perdera. Tanto amor...

Ali próximo, o gato passa. Sem olho, igual a Pisqueta. Trombadinha. Trombadão. Trombada. Restos de comida. Eles vivem.

E lá estava ela. Quase bela. Cabelos longos, emaranhados. No rosto, na boca, nas entranhas. Relembra-se do seu homem. Fugido. Fúlgido naquele sol. A pele negra. Escurinho. Pretinho. Negão. Como ela. A carreira de pó, a maconha. Fastio. Acabaria assim? Negros pastores. Bisnagas, seringas. Pirulitos às crianças. Molecada nojenta. O filho que estava por vir. Amaldiçoado antes de nascer.

O facão sobre a pia. Moscas. A louça por lavar. Uma barata enorme vem subindo pela cama. Negra. Como sua vida.

O facão reluz. A barata continua seu caminho. Já chegou ao lençol encardido. Vem pela sua perna roliça. Seus olhos vermelhos já mal reconhecem aquele ser como um inseto. Seria uma amiga? Porca, vadia. Imóvel.

Está com preguiça para conversas. Fecha os olhos. A amiguinha vem. Teria muitos filhos? Alguns pelo mundo? Ela própria não tinha nenhum. Só aquela semente. O amor misturando-se ao ódio. Seu espírito era limpo. Seu filho seria limpo. Mas ali? Naquele monte de esterco? Podridão. Maldito negro de ônix. Coração de rocha. Fugido dos homens, do trabalho, da vida. Entregue à mercadoria, ao grupo.

Abre os olhos. Assusta a companheira por um instante, que, ressabiada, volteja na pele escura.

Consegue virar-se. A amiga quase sufoca, mas escapa. Abandonou-a. Fora traída.

O facão reluz.. Não suporta mais. O calor, a indecência... Sente a morte que se aproxima. Um tiroteio. Baixinho, baixinho. Não é necessária a notícia. Pressente. E está de prontidão.

A barata ressurge. Sobre o facão. Um sinal.

Cheira mais uma carreira. O brilho prateado instiga, atrai. Consegue arrastar-se. Com dor. Com firmeza. Arremete a lâmina em seu ventre. Encrava a luz em seu abdome. Sua cria está ali. Um anjo enaltecido. Ainda tem forças. Enfia mais fundo. Os olhos turvam. A barata diminui. Tornam-se várias. Filhos. O paraíso.

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