segunda-feira, 24 de março de 2008

Vãs

Tédio das horas incertas.

Deveríamos ser mais úteis

Dá um sono...

E o mundo roda.

Poderíamos então estar bailando

Mas o corpo é cansado

E a vida “flash”...

Gostaríamos de beber absinto

Mas o copo é pesado

Brincaríamos de fazer compras!

Porém a moeda é longínqua.

Melhor sorrir da preguiça

E convidá-la pra jantar

(Comer é preciso).

Último Encontro

Enrosco de braços e pernas

Abraços

Meu seio, seu laço.

Amassas, espalhas, molhas, sugas.

Raio de sol que toca sua pele na minha.

A neve a flutuar

Calor no enlaço do seu rastro

Que fica em mim

Marca minha ferida que sangra

E a Deusa a tudo vê e abençoa

Como um sagrado ato de amor

Compartilhado com o céu e as montanhas

Eterno, porém momentâneo.

Único.

“Redundâncias”

Todo poeta é triste

Não me venham com besteiras

de alegria.

A inspiração vem da tristeza do fundo do ser

E não há antidepressivo que cure

Podem dizer e escrever o contrário

Quero ver quem prova!

E tristeza perdida é tristeza vazia

que não tem por bem nem por ter

Sem querer.

“Alforria”

Sangra-lhe a negra o peito

Dos males que foram feitos

Não há remédio que cure

A dor que se afigura

No semblante do sinhô

Valha-lhe Deus Xangô

Um arremedo de amor

Pelo sonho que chegou

Que na morte se encantou

Assim que o dia raiou.

“Solstício tardio”

Lua de outono

Aurora

Dias bonitos, felizes, ensolarados.

Ensandecidos? Que bom! Que seja sempre assim.

O frio longe, a perder de vista. Vento em outras regiões. Qual neve o quê! Aqui o calor.

Se bem que o vento... Bem, o vento é o vento. Nada muda. Já deveríamos saber.

“Possível”

Desgosto de querer e não saber.

Está e foge. Existe, mas nunca é experimentado.

Quase alcanço, quase toco.

Está lá. Está!

Pega, fica. Comigo, aqui.

Ama, liberta. Age.

Existe e não surge.

Vazio.

Nada.

“Pombinhas”

Você me envolve

Como um xale de voal

Depois apunhala, como se fosse Natal

As criaturas se escondem

Maltratam-se e se matam

Atrás de migalhas de pão estragadas pelo cocô das pombas

Que arrulham e revoam sem se importar nadinha com a miséria humana.

“Poente”

A melancolia da tarde ecoa

Logo, em vão, adormecem

As folhas que o vento traz

Que destino elas terão?

Se é a toa que vão...

E assim nos vai a vida

para cima e para baixo

Seguirá algum compasso?

Para nos dar a resposta

(ou então dar-nos as costas)

beiram pelas encostas

os pensamento sutis

(Melhor diria senis).

“Equilibrista das horas”

Noite de glória inglória

Alegria entristecida

Gozo estremecido

Horizonte vencido

Dia perdido

Olhar caído

Mendigo.

“Pássaro”

Poente que arrasta outro dia de tristezas felizes.

Como podem ser felizes se são tristezas?

A noite por si só é melancólica

E o abismo que a separa do raiar do sol

É triste.

Então por que feliz?

Porque triste.

E a tristeza dói.

A alegria nos faz tremer e cair

Pois é tão difícil segurá-la!

É um pássaro sempre a fugir quando estamos prestes a alcançá-lo...

Que acaba sempre destruído pelo tiro certeiro.

“Tempestade”

Ao longo do barco

As espinhas dos peixes

E os restos das iscas

A rede ficou para trás

Na luta ingrata do pescador

Que o mar venceu

Com seus mistérios e escuridão.

Ondas ferozes atacam.

“Mundo”

Não abrirei a caixa como Pandora

Os males que me afligem são cruéis o bastante

O mundo tão cheio de dor

A inocência encarada como burrice

E o amor, o amor puro, anda tão envergonhado... esconde-se!

A caridade tem medo

A crueldade e o preconceito são virtudes...

Mas a humanidade paga

E a Natureza defende-se ou fenece.

Todos sofrem.

Ratazanas espelhadas


No rio ao luar


Fedem a esgotos,


Mas têm bom coração.

Quão cegos são os homens!

“Menina”

O abandono e a tristeza noturna

Vazia

Sozinha

Machucada

Magoada.

A inércia, lenta, persistente.

Recosto a cabeça, o pranto. Que pranto?

O amor. Onde amor?

Amar? Carinho?

Respeito!

A vida que não é.

Será? Um talvez.

O futuro? Ah, o futuro.

Medo.

“Laura”

A primavera nos trouxe

Um amor assim tão doce

Que vive sempre a sorrir.

Para ela a vida é bela

Não tem desgostos enfim...

Quer o leitinho na hora

(e as perninhas de fora)

Um soninho bom assim.

“Inferno?”

Como gostaria de deixar esta vida

e que nada mais houvesse...

o sofrimento viraria nada

minha existência viraria nada

e que serena fosse minha morte.

Ou será que Caronte viria buscar-me?

pelos pecados que sei, cometi...

por via das dúvidas,

levaria algumas moedas.... podem valer-me de alguma coisa, afinal.

Mas não, estamos aqui pra viver e sofrer.

Lágrimas derramadas - que desperdício!

Só resta um consolo: haverá um fim (haverá?).

“Hospital”

Entra profundamente - rasga as entranhas

com estupidez e audácia

de cavalo em égua no cio

arrogante e veloz no meio da terra

com a lua crescente do meu calor

que se aconchega no seu peito.

“Hélios”

A noite já se foi.

Ele vem glorioso

Com suas promessas e esperanças

aquece meu coração

e sinto como me acalenta

pega-me em seus braços de fogo

E queimo...

Estou viva.

“Vida fácil”

Sobe, desce, salta, esmorece.

Cansa. Gira, gira, gira.

Rói, rói, rói.

Sexo, sexo, sexo.

Entra, sai, curva-se, estica-se, enlouquece.

Preguiça, espreguiça, boceja.

Aninha-se, abraça, aconchega-se.

Dorme, dorme, dorme. Que gostoso é ser um rato!

“Festa (Comemoram na minha ausência)”

Comemoram na minha ausência, na minha casa, sobre a minha mesa, no meu sofá, meu chão (nosso).

Ah, comemoram... O quê?

A doença dos meninos, a operação da mãe?

A tosse, o catarro, a alergia, a febre, a dor, o pranto, a diarréia, o vômito.

Os bebês, a avó?

O ar puro, o céu, a praia, o mar. Inocência.

Comemoram na minha ausência, na minha casa, sobre a minha mesa, no meu sofá, meu chão (nosso).

O marido, o pai, o trabalhador, o cachorro, o escravo.

Comemoram na minha ausência.

Na nossa ausência, no nosso chão, no nosso lar – da mãe, da menina, do menino e do marido, o pai, o trabalhador, o cachorro, o escravo. Comemora quem? (há de ter sido uma festança)

A irmã, o noivo, a irmã do noivo, o irmão, a mulher do irmão e também o marido, o pai, o trabalhador, o cachorro, o escravo.

Comemoram por quê?

Aniversário da irmã.

Comemoram onde?

Na nossa ausência, no nosso chão, no nosso lar, com o marido, o pai, o trabalhador, o escravo, o trouxa.

Não sabes dizer não?

Sabes sim!

À mãe, à menina, ao menino.

Sabes não!

Ao irmão, à irmã, ao noivo, à irmã do noivo, à mulher do irmão.

Dizes não à tosse, ao catarro, à alergia, à febre, à dor, ao pranto.

Dizes não à esposa, ao casamento, à união, ao juramento, ao templo, à monja.

Dizes não sobretudo ao respeito.

Dizes sim ao show, à comemoração, ao bolo, ao vinho, ao jantar, à confraternização, à irmã, ao noivo, à cambada. Negas sua mulher, seus filhos.

Que alegria! Regozijo, brindes, o sorriso (pau-brasil), fartam-se de comer e beber e riem-se na cara do marido, pai, trabalhador, cachorro, escravo, trouxa. Na ausência da mulher, burra, chata, chora por quê? Mimada, egoísta, diferente foi sua criação, temperamento forte, não suportarei um terço do que sua mãe agüentou. Mandona, exigente, infantil, criança birrenta, intransigente, portuguesa de mau gênio. Dilacerada, cortada, sangrando, destruída, hospital, consertamos, está novinha, voltou aos seus dezoito anos!

Sofre, cadela, quem mandou parir três filhos, um morto na barriga, para que abriu as pernas ao pai-trabalhador-escravo? Sofre, cadela, és mulher e foste feita pra parir e ser dilacerada, e romper, e sangrar, ser cortada, costurada e consertada de novo e de novo e de novo e de novo. Sofre, cadela, és mulher e pariste e houve festa na tua ausência.

"Ferve-me o sangue"

Empenho-me inspirada em Ares

Em vencer.

Não sei se fenecerei,

Mas lutarei bravamente

Até a verdade surgir, elevadas

A honra, a moral e a justiça.

Que o milagre aconteça!

“Feridas”

Sim, mágoas existem.

E há perdão.

Posso enumerar as chagas em meu peito

O nascimento, a ausência de flores, os brincos perdidos, o dia das mães (em branco),

aniversário da criança, a ironia e o cinismo dos que não lhe levaram um carrinho, uma bola que fosse da Rua 25 de Março.

Posso enumerá-las todas...

A festa na doença, o terreno, o automóvel, a dívida ainda não paga.

Queres que esqueça... impossível. Mas há perdão.

Não sou perfeita. Ninguém é. Todos erram.

Palavras custam a sair... atos então....

Culturas diferentes. Amor não se força.

“Feitiço”

Lua que alumia os terreiro

traz bafejo mensageiro

de sorte e bem-aventurança

façamos mais uma festança

nestes dias de bonança

que sorria a criança.

“Espera”

Ânsia de viver

ganindo pela estrada

o cio desesperado

pelo que virá e nunca alcanço.

“Um erro”

Meu espírito esfacela-se

Um pouquinho aqui

Um poucochinho acolá

E sobra-me muito pouco de mim mesma.

Afinal, o que sou, quem sou?

Mais uma que grita na noite.

Outra que se cala. Assim não aborreço ninguém.

Mas sou uma pessoa aborrecida. É o que tenho por dentro. Chateio e aborreço. Não, não me calo. Não tenho medos.

Dizem-me que minto. Nada tenho a provar. Sou pantera da noite e dizem-me andorinha.


Tolinha. Coitadinha. Doentinha.

Deveras má. Cruel. Irônica.

Pobrezinha. A todos faz sofrer. Quem sofre mais é ela. Idéia! Idéias! Vamos mudá-la.

Passa-me o parafuso. Aí. Venha a porca. Muito bem! Que tal um chip? (Opa, informatizamos...). Liga, religa, conserta. Ótimo. Está melhorando. Agora um Lexapro, Frontal... Por dentro e por fora. Talvez umas plásticas? Ainda por cima fuma?

Nunca ficará grande coisa. Não tem préstimo para nada. Tudo quer e nada faz. Centralização!

Oh, ao menos que não aborreça ninguém. Enfadonha.

Sinto muito, peço desculpas ao barão e à baronesa. Sou uma pessoa aborrecida. E, nos dias de hoje, não há quem se cale. Pois é. Modernidade.

“Quimera de uma flor”

Dorme a negrinha

Livre da senzala

A vida a lhe sorrir

A sina que há de vir.

“Dia”

Árvores abandonadas

Secam sob o sol

No silêncio de nosso coração

Que clama por justiça

Implora por perdão.

“Devaneio ao sol (Vermelho)”

como ondas você passa sobre mim

me abraça, lambe, suga.

entristeço, desmorono, tombo.

a dor num vai e vem e volta e fica e vai e lambe e suga corrói destrói morde lambe suga corrói destrói

morde lambe suga constrói sangra arde, fica.

“Desértico”

Vômito no deserto

A serpente saltitante do meu ser

Engrolado na areia

O chapéu caído do cowboy

faísca.

A sombra inexistente dos cactos florescendo

Morte

Vida

Morte

Vida.

Carniça.

Olhos e vísceras aos urubus.

"Corrosão"

Amor embutido?

Às favas com seu amor. Joga-o aos vermes.

Melhor seria a paixão lasciva, o sexo inebriante e casual, o ópio, a loucura.

Fidelidade,

promessas?

Ilusão idiota a ser contracenada.

Devolvam-me a vida errante e seus breves prazeres, antes essa,

que a eterna agonia do não ser, não poder e não saber.

Saber sofrer, claro! Com perfeição.

Falta coragem para aceitar a dor, acalentá-la e criá-la,

como aos peixinhos dourados do aquário.

Quanto riso na platéia!

“Feno”

Crio peixes, crio pássaros, dou à luz, nascem ratos. As crianças, os fatos, as horas, os dias, as noites. Ratos, peixes, pássaros, porcos. Chiqueiro.

Vacas, cadelas, machos, cios, ratos.

Mamãe, papai, fatos, crio machos.

Crio fêmeas, crio fatos, pássaros, atos, mato.

Amor em meio ao mato, como os ratos, vacas, cadelas, machos, crio atos.

“32”

Cazuza morreu aos 32 anos

Tantos morrem nessa idade! (ou antes)

Eu não quero morrer aos 32 anos

Mas também não quero ficar velhinha e caquética

Deve ser horrível ser velhinha caquética

A não ser que seja uma velhinha alegrinha e espevitada

Dessas bem louquinhas e enrugadinhas

Que ficam dançando num pé só

E dando bengaladas nos netinhos

"Uma vida, um talvez"

Decadência

Podridão

Escarafuncham na lixeira

detritos comestíveis

O cão tem a sua parte

Amizade

O frio e o medo os unem

Jornal que o vento leva

lambe a mão que esfria

E percorre todo o corpo.

O cheiro já chama a atenção

Façamos novos amigos-irmãos da miséria

O sol vem surgindo.

“Canto (Amarelo)”

Vinha eu passeando pelo campo

Flores amarelas, cesto de frutas, pássaros a cantar, a vida a fulgir no esplendor do céu, amarelo ofuscante do sol, alegria do ser.

Vinha eu passeando pelo campo

A cantar com os pássaros, as flores, as frutas, o céu e o sol.

Nuvem fugidia.

Vinha eu passeando.

Chuva atroz. Granizo dilacera as flores, os pássaros, o céu, as frutas, o sol e o meu canto.

Sento-me no cantinho a chorar.

“Angina”

Aconchego das tristezas vãs

que caem dormentes

nos trilhos da vida

flechada e entortada pelos bastões dos acontecimentos

que nada trazem de novo

mas ainda assim

Machucam e maltratam

Como ao estranho, forasteiro

dentro do envelope pardo.

“Desvãos”

Mundo absurdo, tão concreto, tão certo, tão modesto, aberto.

Dia, noite, horas, favas e amoras, loucas horas de amoras.

Amores, doces, louvores, ardores, amores, cantores, pintores, deslizes, ardores, favores.

“Noite”

Eu só queria ter um amigo.

Não tenho ninguém.

Completamente sozinha. Posso sair na noite e perder-me. Quem sentirá minha falta?

Meus filhos? Talvez... minha mãe, com certeza.

E o resto? O resto é resto.


Amor que não dura não é amor.

Amor que não demonstra não é amor.

Amor que não respeita não é amor.

Amor que não dignifica não é amor.

Idolatria? Nem respeito tenho! Idolatria?

Eu só queria ter um amigo.

Se esse amigo me ouvisse...

Deus? Deus está cego. Deus não se importa com o sofrimento humano. Assiste e ri.


Não existe amor.

Não existe vida.

Existe hipocrisia.

Existe desgraça, medo, tristeza.

Não existe nem poesia. Poesia no mundo? Só para os crentes. Aqueles que crêem no homem e na natureza boa do homem.

A face oculta? Dog. God???

Tudo isso é muito triste. E eu não sei o jogo do contente.

Nem quero aprender. Quero que Pollyanna morra assada.

“Momento”

Quero afundar-me no breu, no precipício

E nadar...

Sem respirar

Sem questionar

Enegrecer a alma

Serpentear e açoitar

Mergulhar. Fazer meu universo parar.

Sono dolente. Preguiça escancarada.

Totalmente desarmada, deitada.

O mundo que passe. Pouco ou nada vale.

A estrada deserta, a areia, o sol, o mar, a praia e torrar.

Dormir, descansar, apagar, esquecer, mofar e morrer.

Dormir, descansar, amoitar.

“Acalento à miséria”

Sofia com frio

Chorando, andando

Cantando, dançando

No seu desvario


Sofia com filho

Pedindo, sorrindo, fingindo

Sonhando, amando

Tal cão erradio


Sofia com folha

Riscando o graveto

Ouvindo o lamento

Perdeu o seu fio


Sofia sem tio

Pisando molinho

Não quer acordar

Seu sobrinho


Sobrinho do frio, da luta, do mar.

Ela não é irmã. É filha.
“Sem título”
Os dias atuais. Espera aí. 2004.

2004? O que mudou?

Absolutamente nada? Será?

Puritanos – puritanos.

Racistas – racistas.

Bons – bons.

Maus – maus.

Classificação geral: 1 a 0.

Let’s play again?

"À roda da fogueira"

À roda da fogueira quero bailar

E dançar e sorrir

Cantar, bailar

Sorrir, dançar

Ser feliz e brincar.

Que venham as gentes

Tragam as sementes

E os povos a festejar

A vida a vida a vida

Cantemos e dancemos

Sejamos felizes

hoje hoje hoje

Vamos beijar

Vamos rolar

Nos embriagar

Nos satisfazer

Livres

Rolar e beijar e dançar

Todos

Aos pares

Sem pares

Cem pares

Aos múltiplos

Livres

Vamos soltar

Eu não pertenço a ninguém

Nem você nem eu nem ele

Nós todos

Livres

Dos pares formados

Sem medo das doenças, do sexo, da noite.

Aventuras, alegria

A dança.

Pertenço à terra e ao mundo

E o vento nos beija

E o fogo nos lambe

Viramos cinzas (mas felizes!)

Farpas da vida

Ressurreição

No calor da fogueira

Sentimentos ardentes


Ao léu.

A Queda

Solto-me, sinto-me leve, livre

A flutuar

Decerto alguém me dará a mão

Antes da pedra fria

Mas é tão rápido! Já não sinto que flutuo!

O mundo passa em coloridos diversos

E sombras espiam das janelas

A sorrir

As mãos a aparar o corpo inerte,

Serão capazes?

Mas é tudo tão rápido!

Onde a mão?

Tola ilusão, esborrachada.

Agora poemas!

Antes que alguém pergunte, eu não tentei me matar nem nada. Nessa época, só estava fissurada na idéia de morrer, nunca cheguei a tentar realmente hahahaha

Vazio

Naquela manhã cinzenta, a melancolia pairava em meu espírito. Não podia evitar aquela angústia no coração que apagava meus sonhos tão belos e o futuro que há pouco era uma certeza mostrava-se um vazio. O extremo cansaço fazia com que eu carregasse aquela barriga enorme como um fardo indesejado.

Com tristeza recordei da empolgação que senti no momento da inseminação. Estava tão bem treinada, preparei-me para o auge de minha existência. E via meus planos escoarem-se em meio a lágrimas inúteis.

O que me dava a certeza do fracasso? Não saberia dizer ao certo. Era apenas intuição. Mas era o suficiente. Já soubera de vários casos assim. Não chegavam a ser frequentes, mas eram descritos da mesma forma com que agora me sentia com aquele ser em meu ventre.

Se ao menos eu tivesse um companheiro, talvez conseguisse desabafar. Ah, nem assim. Era certo que a sensação de incompetência me impediria. E só de pensar nisso meu rosto ardia de vergonha. E meu medo aumentava conforme a hora se aproximava.

Não tenho propriamente arrependimento. Sinto-me nauseada e estúpida. Não havia escolha, esse era o caminho predestinado. E mesmo com todo o esforço que fiz, decaí a ponto de querer desaparecer. Sabia o que me esperava no final.

Minha cabeça começou a flutuar, meu cérebro adormeceu. Cheguei à beira da inconsciência. Gostaria de ter afundando. Mas não. Vi ainda os olhos vidrados do ser que gerei. Não havia a menor chance. Nem para ele, nem para mim. E o estranho fruto de minha jornada contorceu-se aflito. Silenciosamente. Levei-o para o local em que me aguardavam. Com olhos pregados no chão ouvi como tudo seria feito. Não podia sequer implorar por outra chance. Nem uma ponta de orgulho sobrara para me fazer resistir. Sabia muito bem de que forma seria recompensada. Resignadamente, mergulhei na completa escuridão.

Cume

A flor repousava na ebriedade da loucura. Gotas de orvalho abriam a terra. Um sonho. Adoraria continuar. O grande relógio a despertou.

Folhas imensas abraçaram o solo úmido. Curvaram-se à passagem do mestre que, ternamente, acariciou as pétalas abertas. O trote dos cavalos não o incomodou. Sentia-se ausente.

A paisagem cantava agora com todo o vigor. As raízes desentranharam-se e puseram-se a correr desvairadas.

A flor alcançou a montanha. Impulsionada pelo sol, chegou ao topo. Lá estava a pedra. As mudas esticaram-se alegres.

Iniciaram-se as danças. Ao redor o rebuliço das provas. Uma a uma foram depositadas. O sorteio foi repentino.

Aos poucos o ar tornou-se sereno. Era o modo errante das filerias que esvaia o mistério. Pelas arestas, as piadas inúteis.

Pouco a pouco destacaram-se as obras reais. Vinham tímidas, porém rígidas. O dourado em fosco e o negro em luz. Anéis entrelaçados.

Os incumbidos fizeram a retirada. Sentiam a honra da tarefa como um milagre do tempo.

A felicidade dos poucos entronados expirava trágica. Ao inverter o rumo da fonte, o silêncio vislumbrou a jarra. Por pouco, os santos cresceram perdidos. A ameaça da lua coroou a banda.

Passagem

O sol mal tinha despontado. A julgar pela pressa com que se aboletavam nos trens, tinham medo de serem deixados para trás e perder a oportunidade. Não parava de chegar gente à estação. Assim que avistavam o trem, já se debatiam em busca do melhor lugar para a entrada. E numa barafunda de pernas e braços aquela multidão surarenta ia acotovelando-se até ocupar todo o espaço disponível. Havia toda sorte de gente. O barulho que faziam era tremendo. Choro de crianças, mulheres reclamando, velhos irritadiços, animais de estimação, tudo contribuia para tornar a situação quase insuportável. Não era longa a espera, pois após algum tempo da partida do trem, outro tomava seu lugar. E já lá estava um novo grupo, ansioso como o anterior. Vinham sem cessar, afoitos e esperançosos.

Em meio à confusão, um homem tentava fazer-se ouvir. Usava um terno elegante, gravata, sapatos lustrosos. Sua aparência era impecável. Parecia tratar-se de um jovem executivo, pois trazia uma pasta em uma das mãos. Ninguém lhe dava atenção, preocupados sempre em tomar o próximo trem. Isso não o desestimulava. Em pouco tempo estava aos berros. Parecia bastante decepcionado e incrédulo por suas palavras não serem levadas a sério. Mesmo assim continuava com seus uivos, tentando sobrepujar o estardalhaço provocado pela massa. Era constantemente empurrado por obstruir a passagem. Quanto mais desprezavam-no, maior era seu empenho. A pasta foi atirada em um transeunte, que não deu a menor importância aos papéis que espalharam-se por toda a parte.

O homem começou a perder sua bonita aparência. Aos poucos, foi ficando sujo e desgrenhado. Embora parecesse não perceber ou se importar, seu rosto já mostrava sinais de cansaço e desilusão. Contudo, continuava tentando. Conforme o tempo passava, acabou por ficar completamente imundo. Não bastasse, emagrecia a olhos vistos. Logo era pele e ossos, perambulando entre as gentes e gritando sempre.

Agora tocava as pessoas pois sua voz ia enfraquecendo. Isso só serviu para enfurecê-las. Com chutes, chacoalhões e empurrões, iam passando pelo então esquelético rapaz. Estava ali há horas e horas. Por fim, quedou-se esgotado. Dentro em pouco, as palavras tonaram-se susurros e sua respiração cessou totalmente.

As pessoas corriam por todos os lados, sem consciência do que havia acontecido, nem poderiam tê-la, pois inclusive já não era a mesma gente que passava. Muitos chutavam ou pisavam aquele débil corpo sem notar do que se tratava. Os poucos que percebiam afastavam-se com expressão de repulsa.

Somente uma mulher parou e olhou atentamente aquele rosto sem vida. Ela trazia um bebê nos braços, apertado contra o peito. A seu lado, um homem a puxava pela mão. Tentava arrastar a mulher dali, porém esta lhe entregou a criança e freneticamente começou a segurar e conter quem lhe caísse em mãos. O homem ainda insistiu. Não obteve qualquer reação e prosseguiu apertando o bebê contra o peito, exatamente da forma como ela o fizera antes.

A mulher a todo custo agarrava e segurava o primeiro passante que alcançasse e este, surpreso e furioso, só se libertava após uma pequena luta. Apesar da aparência frágil, a mulher mostrava-se forte o suficiente para brecar um após outro. E todos eram violentos à sua maneira, na ânsia de fugir daquela que os impedia de prosseguir. Na sucessão de tapas e bordoadas, ela continuava com maior furor. De leves arranhaduras passou a apresentar várias escoriações, que tornavam-se mais graves a cada vez que alguém se libertava. Lutou até seu corpo encher-se de extensas feridas disformes, com os cabelos ensanguentados colados à cabeça e o rosto cheio de hematomas. O sangue agora corria vívido e a mulher ainda manchava as roupas daqueles que conseguia alcançar, que fugiam apavorados e nauseados. Ajoelhou-se, ainda com o braço levantado. As pessoas atropelaram-se sobre aquela massa disforme e finalmente o coração da mulher parou de bater.

Todos passavam pelo corpo que ia sendo aos poucos dilacerado. Os trens continuavam a chegar e a partir, sempre lotados. E mais e mais pessoas chegavam à estação. Anoitecia.

Uma criança reparou na morta. Imediatamente seus olhos esbugalharam-se. Os irmãos ainda tentaram persuadi-la.

Espera

Já estava quase no horário combinado. Não necessitava de relógios para sabê-lo. A noção de tempo incrustara-se em seu cérebro de forma irremediável.

Os corpos mutilados em suas respectivas macas, os membros em sacos plásticos traziam-lhe uma devastadora e extenuante sensação de mau agouro. Era isso mesmo. Como um presságio. Essa tolice permanecera intacta desde os tempos em que era comum acreditar nisso. Hoje, receberia no mínimo um atestado de esgotamento nervoso por pensar de forma tão abstrata. Poderia ser imediatamente afastado de suas funções. Agradeceu aos céus por seus pensamentos serem livres naquele local sagrado.

Não era de se deixar influenciar à vista de sangue ou matéria em decomposição. Nem no início de sua brilhante carreira fora assim. E isso já fora há um bom tempo. Estava sendo modesto. Fora há um tempo incalculável!

Lembrava-se perfeitamente das primeiras experiências. Exceto por detalhes insignificantes, por sinal descartados pelo escasso valor científico.

Primeiramente testaram combinações inusitadas para a época. O cruzamento de crianças com coelhos, resultando em pernas saltitantes em bebês com pouca sobrevida após o tumultuado nascimento. A imprensa local caíra matando sobre eles, cravando-lhes injúrias impressionantes. Mostravam-se dotados de uma imaginação mais fértil ainda que a dos pobres cientistas. Embora irritantes, foram úteis na medida em que lhes trouxeram notoriedade e rapidamente a atenção do mundo inteiro se voltara para suas façanhas. Não fora um período fácil, mas abrira muitas portas antes lacradas com as recusas que recebiam constantemente. Como toda novidade, a realidade tornara-se assustadora para aquelas mentes tacanhas de outrora. Precisavam primeiro digerir a idéia, acostumar-se com ela e, por fim, aceitá-la.

Após um período de quietude (onde a maioria aguardava silenciosamente, ávida por mudanças) tentaram com os cavalos em suas diversas mutações. O fruto fora animador. O sucesso surgiu em forma de crianças crescendo saudáveis, com suas cabeças de eqüídeos. Infelizmente, revelando-se mais tarde totalmente inférteis. A essa altura a movimentação genética era grande, e os próximos já aguardavam. Com total sucesso, obtiveram rãs com braços delicados de meninas e vigorosos de garotos. Estas cresceram e procriaram-se, trazendo o canal necessário para profundas transformações. Breve, eram vistos os cangurus com suas bolsas repletas de bebês semi-humanos. Cada operação bem sucedida era seguida de comemorações nos mais longínquos e inacessíveis locais. Aos poucos a população em geral conscientizava-se da importância da evolução das técnicas e criações.

E era fato notório a aversão pela antiquada idéia de perseguição de uma raça pura ou de uma espécie superior. Essa torpeza havia sido descartada, ou melhor, nem sequer fora cogitada. O que almejavam, sim, era um ser que sobrevivesse a toda forma de caso fortuito ou força maior. Homem ou Natureza, nada seria capaz de enfraquecê-lo, muito menos abatê-lo. Nem doenças, terremotos, atentados, o que fosse. O ser supremo passaria incólume pelas guerras, bomba atômica, toda sorte de desgraça que poderia destruir o frágil ser humano e erradicá-lo de uma vez por todas. Não era uma tarefa fácil. Levaria centenas, quiçá milhares de anos. E quem estava com pressa? Parodiando uma esquecida canção, tinham todo o tempo do mundo!

Os insetos, como era de se esperar, foram campeões no quesito resistência. Obviamente, a barata, tão rejeitada e inferiorizada pelos rústicos, como também já haviam antecipado, mostrara-se incrivelmente forte quando incorporada a couraças inquebrantáveis. Sua inteligência inferior veio pouco a pouco sendo incrementada através de sutis mudanças, chegando ao ponto de tornar-se equivalente à de um sábio pensador. Logo seu QI chegou a um nível avançado, sequer imaginado pelos desprovidos de fé na ciência. Na essência, remetia vagamente o observador à sua real origem, já então dotada de um rosto inteligente e perspicaz, digno de um grande homem.

Os vegetais foram também de extrema importância. Priorizaram-se os que não realizavam fotossíntese. Eliminando a presença do sol, ambicionava-se populacionar os outros planetas. Não deviam ater-se a pensamentos mesquinhos.

Houve casos frustrantes, como os das meninas-borboletas. Além de só originarem-se indivíduos do sexo feminino, estas, recém saídas da pupa, com rostinhos adoráveis e mostrando grande vigor, aos poucos eram possuídas por estranha e inesperada morbidez. A crisálida jazia abandonada, as asas erguiam-se esplendorosas, prestes a alçar vôo, e em pouco as borboletas eram acometidas pelo mesmo mal súbito que fazia fenecer uma a uma, conforme eram criadas. Estremeciam, pareciam amedrontadas e perdidas. Inexplicavelmente entorpecidas, quedavam-se com olhos fixos e sem proferir uma só palavra, nada que desse uma direção a ser percorrida para salvá-las. Foram feitas inúmeras tentativas, frustradas por sinal, pois nenhuma das meninas parecia ter condições psicológicas de voar. Instrumentalmente eram perfeitas. Porém, aparentavam ser a própria encarnação da beleza e do medo, tornando-se mais frágeis a cada insucesso. Foi com desgosto que abandonaram o projeto, visto que o próximo passo seria a miscigenação dessas meninas com o bebê-lagarto. Este sim, crescia a olhos vistos, tornava-se adulto e multiplicava-se facilmente entre os mais diversos grupos étnicos, gerando filhos encantadoramente extravagantes.

Os abutres foram uma grata exceção. Não se esperava grandes progressos com eles. Surpreenderam a todos. Além de colaborar com a limpeza dos laboratórios e dos ambientes aclimatados, deram-se bem nos cruzamentos com os garotos-leopardo, que há muito haviam se estabilizado. Dessa incrível combinação, rechaçada à primeira vista por tantos, surgiu um ser exótico e insaciável que desvendaria muitos mistérios da criação.

Ele esteve presente desde o início. Suportara, estoicamente, ele e sua talentosa equipe, as críticas acaloradas, os grupos de protesto... Estes foram os piores. Brotavam por todas as partes, como ervas daninhas mal arrancadas. Protestavam pelos direitos dos homens, mulheres, crianças, fetos, animais, insetos, vegetais. Diziam-se protetores do livre-arbítrio dos seres. Até mesmo dos inanimados! Era uma insensatez. Viam-se assolados pelos defensores dos direitos dos cogumelos e, quando podiam respirar por um segundo, vinham outros com os direitos das amebas! Era impressionante a quantidade de criaturas defensáveis existentes no planeta... Agora riam-se a valer desses inoportunos, mas passaram por apuros memoráveis. Todas as coisas eram alçadas à elevadíssima categoria de seres divinos e intocáveis. Até ser criada a lei que dera um basta nessas manifestações incongruentes. Os gritos alucinados de “salvem as almas” deram lugar a indecisos murmúrios. Vencidos, arrastaram-se à sombra da própria mediocridade. As regras estavam bastante claras e, mesmo às custas de vários banimentos e mortes, foram rigidamente cumpridas. Os que sobraram arrependeram-se sinceramente e não causaram mais distorções ao trabalho árduo que o seu grupo de acadêmicos vinha desempenhando em prol de um pujante futuro.

Todos os envolvidos foram devidamente substituídos por seus clones, ao longo das sucessivas gerações, dotados das mesmíssimas informações dos antecessores. Sentia-se honrado e vaidoso por participar do seleto grupo.

Entretanto, as adversidades enfrentadas eram mais profundas do que essas. Eram verdadeiros baldes de água fria no entusiasmo da equipe. Os renomados cientistas de todo o planeta chegaram a um impasse. Eram tomados pela dúvida que a todos mortificava.

Os espécimes deslumbrantes, agora uma assombrosa realidade, eram contidos através da milenar técnica da gratificação. Os que se esforçavam o suficiente eram agraciados com determinada cota de benefícios. Tinham plena consciência do processo e mostravam-se satisfeitos. Assim eram submetidos ao controle e nunca houvera riscos desnecessários. As vivências negativas eram sistematicamente apagadas de suas memórias. O limite do quanto podiam suportar era sagrado. Não podiam negligenciar a inteligência desses seres, mesmo com toda a disciplina que lhes fora imposta. A cota de prazer devida a cada um deles era um direito nato. Fora assim até então. Até os grandes nomes da ciência perceberem que não haveria mais evolução sem sofrimento. E isso implicava em correr riscos. Todos os riscos que sempre evitaram. Não se estava pensando em pequenas frustrações. E sim, naquelas que levariam as criações queridas e aplaudidas ao desespero visceral. Fizeram cálculos infindáveis, estudaram fórmulas complexas. Infelizmente, por mais que pensassem e repensassem, a solução para a estagnação a que chegaram era essa. Se as criaturas não sentissem medo, ou melhor, um terror quase ilimitado, não seriam capazes de progredir. E séculos de trabalho incessante evaporar-se-iam rapidamente. Era exatamente isso o que pretendiam evitar, o impensável, o absurdo, o impossível. Apesar de ser a única saída, trazia aos eminentes pensadores um tremendo mal-estar. Fazer suas amadas criaturas penarem, passando por extremas e antecipadas privações, inevitavelmente traria a destruição a inúmeras delas. E, pior, a única alternativa seria desistir. Destruir o encanto que os impulsionara até então. Abrir mão do esplendor almejado para o futuro próximo, pelo qual lutaram arduamente, aquele ao qual se prenderam por centenas de anos. Desde os primórdios, quando os cruzamentos eram feitos na clandestinidade, naquela época em que a humanidade não estava pronta para a grandiosidade da qual sequer suspeitava. Somente eles, os escolhidos, os que possuíam a visão do porvindouro, sabiam de antemão da busca em que se embrenhariam desde então. Dos bastidores, de minoria tímida transformaram-se no correr do tempo em uma só voz. Os lúcidos acompanharam avidamente essa empreitada.

Chegara o instante de ser sincero frente aos próprios pensamentos. A garantia de serem bem sucedidos não mais vigorava. Era agora uma simples questão de arriscar ou não. Como em um jogo de azar. Esse desvio inesperado era estarrecedor. Sempre mantiveram o controle. E agora? E agora a difícil decisão na realidade não dava a menor margem a dúvidas. Era isso ou desistir de todas as metas traçadas meticulosamente. E desistir traria um fracasso irremediável.

Respirou profundamente, procurando recobrar a paz de espírito. Finalmente era chamado a comparecer. Não possuía todas as respostas. Todavia, tomara-se da firme convicção de prosseguir. A qualquer custo. Seu dever seria o de reanimar o time e provar-lhe o quanto seria benéfica a mudança de atitude perante as vidas que trouxeram ao mundo. Esclarecer seus condiscípulos sobre a certeza do triunfo. De forma que só ele soubesse dos inevitáveis riscos. Manteria acesa a crença de que seus planos continuavam infalíveis. Mesmo que por trás disso beirassem o abismo inexorável. Era extremamente necessária a omissão dessa sinistra informação.

Com um largo e tranqüilizador sorriso, dirigiu-se à ponta da enorme mesa de reuniões. Atraiu todas as atenções para seu mais eloqüente discurso, capaz de inflamar o espírito de cada um dos presentes com o gosto da vitória que se aproximava. Foi também a maior e mais deslavada mentira que saiu de seus lábios em todas as suas existências.

Às Escuras

Era o esperado dia do encontro. Aprumara-se todo. Estava impecável. Um elegantíssimo rapaz. Inspiraria confiança no mais exigente pai de família. Calma. Precisava primeiramente conhecer a noiva...

Conversaram muito. Longas prosas, madrugadas inteiras contando bravuras, peripécias e experiências (nem todas lá muito boas, mas sempre adocicadas para ficarem com uma aparência melhor) de sua vida passada. Como não gostava de ficar muito tempo sem um cara a cara, isso não passara de uma semana. Era o suficiente, se valesse a pena não deixariam de se falar e, quem sabe, fazer outras coisinhas mais.

Estava muito empolgado. Vira algumas fotos de sua “quase” namorada e ela era uma tentação. Alta, esguia, de corpo bem feito, olhar meigo e sempre sorridente. Se aquelas fotos fossem reais, e não modificadas por programas de computador, a descrição dada por ela combinava perfeitamente com elas. A extrema autoconfiança em seu tom de voz ao telefone, sem parecer arrogante, a voz tranqüila e sincera, tudo levava a crer que não estava mentindo.

Apesar disso, uma pontada de desconfiança ainda vigorava, afinal, já estava vacinado para esses encontros. Por mais que tivesse decepcionado-se inúmeras vezes (a da garota gorducha com aparelho nos dentes que se descrevera como sendo uma sílfide, a da senhora que se dizia passar por adolescente...), não desistira de encontrar a sonhada alma gêmea na vastidão virtual. E a internet, não podia ser injusto, também já lhe proporcionara companhias bastante agradáveis. Embora nunca nenhuma outra o tivesse deixado tão entusiasmado quanto esta. Estava quase na hora de sair.


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A menina ansiosamente escovava os cabelos negros. Via-se que era vaidosa. E tinha uma ânsia no olhar, um brilho malicioso que destoava um pouco de sua figura angelical.

Precisaria sair escondida dos pais (de novo!), mas não havia outra saída. Quando (e se) descobrissem, seria tarde. Eles viviam alertando-a sobre o perigo de encontrar alguém que pudesse fazer-lhe mal. Fazer mal a ela! Que piada. E era obrigada a suportar esses monólogos, acalmá-los, pedir desculpas... Estava tornando-se cada vez mais difícil ouvi-los calada, fazendo promessas que não tinha a menor intenção de cumprir. A mãe era a mais irritante, dava-lhe nos nervos com aquela seu ar de autopiedade, sempre lacrimosa e por vezes histérica. Sabia que se não fosse pela má-influência daquela sonsa, o pai certamente a deixaria sossegada. No início daquela dura convivência, ele a apoiava e justificava suas saídas, dizia sempre ser coisa de gente nova, uma fase, argumentava que naquela idade todos lutavam por maior liberdade e que contrariá-la seria pior. Qual nada! A megera ficara ainda mais atiçada e passara a persegui-la com maior empenho. Sua intuição estava certa, havia um certo ciúme por parte daquela que se intitulava sua maior protetora. A velha notara a afinidade entre os dois e a partir daí fora sua inimiga ferrenha, apesar de tentar disfarçar. Mas ela já estava acostumada com esses e outros disparates e tramas complicadas. Inevitavelmente ia parar no olho do furacão e ainda como causadora dos infortúnios familiares.

Se bem que esse casal ultrapassasse os limites da sanidade muito antes da sua chegada. Eram as pessoas mais ignorantes com que já tinha lidado. No atual estágio de convivência, queriam que ela se mostrasse eternamente grata por terem-na recebido, uma desgarrada ovelhinha (!), no seio de seu lar acolhedor. Acolhedor para eles era sinônimo de lavagem de roupas, louças, tudo a sua volta deveria estar brilhando e, obviamente, a incumbida da maior parte desses prazerosos afazeres era ela. Agiam como se fossem seus donos, sempre com uma lista de deveres e obrigações. Quanto aos direitos, foram deixados de lado como algo pernicioso para sua criação. Quando tentara argumentar sobre eles, com seu modo mais carinhoso, simplesmente ignoraram-na, olhando-a como se estivesse completamente louca. Reciprocidade era uma palavra que não constava do vocabulário dito amplo dos seus ilustres educadores. Mera fachada. Eram uns boçais.

Enfim, teria que suportar aqueles rançosos por mais algumas semanas. E daria um jeito de virar-se, nem que para isso precisasse retorcer-se qual rabinho arrancado da lagartixa. E suportaria também o novo garoto, a quem deveria chamar “irmão” e tratar com carinho e consideração. Só lhe faltava essa, trocar fraldas e dar leite para um pirralho.

Mas dessa vez seria bastante cautelosa e esperaria o momento exato para raspar-se dali. Até lá, era ser o modelo da graça e bom comportamento. Não podia levantar suspeitas novamente. Já enfrentara situações lastimáveis e, em meio ao desespero gerado por elas, quase pusera tudo a perder. Amadurecera. Sabia que era cedo para partir.

Seria então a rainha da obediência ilimitada. Com exceção, é claro, da noite. Acima das aparências estava a sua alimentação. Em razão dela estava ávida pelos acontecimentos que viriam a seguir. Podia farejar as novidades mesmo por trás da agourenta vidraça, com seu cortinado que em algum dia de um passado distante fora cor-de-rosa ou assemelhado. Por mais que se lavasse aquela coisa encardida, não havia como voltar à cor original.

Afastou esses pensamentos de “lavar, limpar” de seu cérebro já admoestado o bastante por varreduras, esfregaduras, sempre na aguda e constante voz de sua mamãe que a cada dia tornava-se mais parecida com a madrasta de Cinderela. Só faltavam as duas irmãs. Se bem que foram substituídas por um bebê chorão e exigente. Uma troca nada vantajosa. Talvez existisse um príncipe encantado para trazer-lhe alento. Teria que poupá-lo nem que fosse para ouvir um pouco mais das suas queixas de órfã em meio ao naufrágio. Estava misturando as histórias... Não gostava de envolver-se demais em suas próprias fantasias.

Ao menos ela deveria manter os pés no chão do real. Por outro lado, a voz do príncipe era tão entusiasmada e vigorosa que seria bom perder-se em um devaneio para variar.

Estava particularmente feliz e corajosa por conhecê-lo. Já podia adivinhar seu semblante. Engraçado era ele, parecia uma criança, enamorando-se por uma completa desconhecida. Ele não possuía um milésimo de seu dom divinatório e mesmo assim estaria lá, seu instinto aguçado por um misto de esperança e curiosidade.

Adorava noites como essa, em que o fascínio a atraía suavemente. Sentia-se viva e cintilava de expectativa. Como há muito tempo, um sentimento que parecia esquecido a tomara inteira. Era maravilhoso! Sentiria a quietude e o aconchego, ainda que momentâneos, que só certos braços foram capazes de dar-lhe. Pensar Nele ainda causava um estremecimento de saudade.

Deu uma última olhada em suas formas. Estava deslumbrante, até naqueles trapinhos que atualmente lhe davam para vestir-se. Como se pudessem com isso apagar-lhe a beleza extraordinária. E a intenção era somente essa, torná-la ainda mais infeliz naquela casa.

Saiu, a contragosto, pela janela. Que lugar-comum esvair-se desse jeito! Irritava-a sobremaneira agir de forma tão previsível. Ao menos seria por pouco tempo. Sua paciência estava quase no limite, a recém adquirida família em breve conheceria o sabor da despedida especialmente programada para ela. E então, adeus papaizinhos e nenê birrento.

A noite estava mesmo encantadora. A brisa do mar trazia um alívio abençoado para seu confinamento. A lua enorme, os casais enamorados, era o cenário perfeito. O céu cheinho de estrelas. De quando em quando uma pessoa sozinha. Não precisaria desses desencaminhados. Não dessa vez.

Buscou não aprofundar-se nos pensamentos alheios, não queria estragar o clima. Foi-lhe impossível. Era pena, mas a realidade sombria apoderou-se de seu espírito rapidamente. Os casaizinhos tornaram-se particularmente insossos. Beijos, abraços e juras de amor sem significado algum. Ao menos sentiam-se sinceros ao fazer declarações. Já os que andavam em grupos, com suas recíprocas demonstrações de amizade e respeito, acabavam com qualquer ilusão. Eram traiçoeiros e pestilentos, uns almejando se dar bem às custas dos outros, enquanto procuravam provar qual era o melhor, mais bonito, inteligente ou bem pago. Quanta hipocrisia. Gostaria de tapar os ouvidos da mente. Sabia dos que evoluíram a tal ponto. Ela ainda alcançaria esse estágio e não seria mais atormentada pela generalizada loucura dos homens. Uma loucura tão previsível... Necessitava acalmar-se para não desviar sua atenção do que importava. Exercitaria o egoísmo.

Vislumbrou o alvo. Sentado em um banquinho frente às salas de cinema. Ela nem precisaria da descrição das roupas. Reconhecera-o assim que estava ao alcance de seus sentidos.

Os pensamentos dele eram igualmente fortes. E a expectativa daquele homem a embriagava por antecipação. Fazia-a recordar-se imenso Daquele que conhecera. A semelhança era mesmo incrível, tanto na aparência física quanto nos sentimentos. Eram nobres e belos! Resistiu com esforço a atirar-se sobre ele e dizer o quanto esperara pelo reencontro.

Despertou daquela lembrança vívida e procurou ater-se ao presente. Só abriria portas à decepção se continuasse naquele sonho antigo. Ninguém jamais se igualaria a Ele. Que não pudera existir no mundo em que ela agora se encontrava, completamente sozinha.

Aproximou-se demonstrando simpatia e leve surpresa. Com um meio sorriso no rosto pálido inquiriu com ar inocente: - É você?

Em resposta, os olhos do homem apertaram-se de satisfação.

Logo estavam de mãos dadas e perdiam-se entre outros casais apaixonados.

Ela quase desistiu de seu intento. Ou melhor, quase modificou-o. Não viera à toa. O máximo que poderia conseguir seria dar-lhe uma chance. Aquela alma parecia-lhe fresca, nova. Merecedora da oportunidade. Mas não deixaria escapar-lhe. Tinha fome. A decisão deveria ser rápida. As palavras e atos seguintes seriam cruciais. Um erro a essa altura significaria a própria destruição, mesmo que longínqua.


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Ela era ainda mais estonteante do que imaginara. Nem as fotos faziam jus aquele encanto. E via-se claramente que gostara dele! Era como tirar a sorte grande.

A conversa fluía naturalmente. Como se já fossem amantes de longa data, abraçaram-se e beijaram-se, ele nem saberia dizer exatamente de quem partira a iniciativa. Fora ele que se inclinara sobre aquela boca carnuda e quente, ou o contrário? Esqueceu completamente dos ingressos para o filme e envolveu-se comovido nos desgostos pelos quais a pobrezinha vinha passando. Devia ser esse o motivo da preocupação em sua voz sensualmente infantil.

As horas fluíram e só por um momento ele temeu. Pareceu notar uma ironia contida naquelas ternas palavras. Num relance, uma maldade fria surpreendeu-o em meio a um olhar apaixonado. Só podia estar delirando. Crueldade certamente não combinava com aquela senhorita tão indefesa. Estava tomado pela paixão e o medo de que algo pudesse dar errado o fazia sofrer alucinações. Enfiou seus dedos ávidos naquele emaranhado de cabelos volumosos e abandonou definitivamente suas dúvidas. Terminara sua busca. Seria o homem mais feliz e realizado do Universo.


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Com tristeza, ela percebeu que não poderia viver uma mentira. Ele não substituiria seu Amado. Era fraco. Apenas outro entre os amaldiçoados que cruzavam seu caminho. Não perderia seu tempo precioso com um perdedor vulgar. Só podia lamentar-se e arrastá-lo para longe daquela pequena multidão. E agir rapidamente. Não queria fazê-lo sofrer. Lembrava-O por demais.

Obsessão

Este era realmente um de seus passatempos prediletos. Assim que chegava em casa, esquecia-se de tudo frente ao computador. Transportava-se imediatamente para aquele universo de batalhas sangrentas, em que todos morriam e renasciam sem cessar. Era um bom jogador, não usava de trapaças como sabia que muitos faziam, recusava-se a lutar contra esses e nem os aceitava como parceiros. Costumava liderar o seu grupo, era invariavelmente o campeão no número de mortes de inimigos. Raramente era pego de surpresa.

Mergulhado naquele mundo fictício de policiais e terroristas, não tinha olhos nem ouvidos para mais nada. A mãe o chamava para jantar, o cachorro lambia sua mão pedindo atenção, mas desistiam porque não havia qualquer reação por parte dele. Estava totalmente submerso e concentrado naquela pequena tela.

Casou-se. Parecia apaixonado. Era de se esperar que abandonasse aquele passatempo. Mas não foi assim. Teve filhos, e agora não era mais o cão que implorava por um afago. Eram crianças. Não era mais sua mãe que o importunava com ameaças de desligar o maldito computador, mas sim sua mulher. Que não possuía a paciência da mãe, nem do cão. Contudo, o que ela pedia era impossível. Ele não podia de uma hora para outra abandonar algo que lhe dava tanto prazer.

Passaram-se os anos e notou por fim que não havia mais mãe, cachorro, mulher ou filhos. Finalmente deixariam-no jogar em paz.

Foi com olhos esbugalhados em sua cadeira giratória que o encontraram, amarelo e esmaecido, preso àquela guerra da qual não conseguia libertar-se.

No hospício em que fora internado, era apenas mais um, com suas próprias manias e cacoetes de alienado. Se observassem-no com atenção, perceberiam que suas mãos moviam-se como aquelas que seguram um mouse e seus olhos inquietos não desgrudavam-se de algo que só ele podia enxergar.

Ignorava completamente as visitas, que acabaram por desistir, deixando-o livre para matar com suas armas e munições cada vez mais poderosas.

Por Entre Sombras

O céu avermelhava-se. Por fim poderia dar seu costumeiro passeio. Na escuridão sentia-se ainda mais à vontade. Os muros das redondezas, os perigos, os cães mansos e os furiosos, a roda de amigos, as gatas que entrariam no cio em breve, traziam-lhe uma tranqüilidade amistosa.

Assim a vida lhe corria sem grandes percalços. Seus donos eram cuidadosos, tratavam-no com carinho e atenção. Ronronava feliz no colo macio e aconchegante daquela que o acolhera ainda filhote.

Porém, gradualmente as coisas foram se modificando. Já não recebia tantos agrados. Não sentia mais longos dedos acariciando-no. Pequenos gestos de apego foram sendo abandonados.

Não demorou a perceber o motivo. Um novo humano aos poucos tomava-lhe o lugar. Antes mesmo de nascer, já fazia-lhe a realidade ingrata. E seria exatamente como nas histórias que ouvira inúmeras vezes. A criança puxar-lhe-ia o rabo, arrancar-lhe-ia os pelos, enfim, tornaria sua existência insuportável.

Segundo os mais experientes, o melhor seria procurar outra moradia. Mas ele recusava-se a abandonar aqueles que tinham sido seus amigos e provedores por tanto tempo.

Até que aconteceu o que achava mais improvável. Percebera olhares ressabiados, discussões acaloradas, algo de estranho estava acontecendo. Não demorou muito para, ao regressar de uma de suas saídas noturnas, encontrar portas e janelas trancadas, com o claro intuito de impedi-lo de entrar.

De nada adiantaram seus apelos, miados lamuriosos e arranhadelas. Não o queriam mais ali.

Sem opção, partiu. Com tristeza e revolta, sem entender a injustiça para com ele que sempre se mostrara grato, ia cabisbaixo. Deu de encontro com um enorme e gordo felino, peludo, daquela raça um tanto pedante, um gato persa. Deitado tranqüilamente sobre um muro, perguntou-lhe qual o problema que o fazia tão desolado.

Não era de dar ouvidos a esses comentários inoportunos, mas estava tão triste que acabou por desabafar. Contou-lhe sua desdita.

O gatão explicou-lhe então o motivo por trás da decisão dos seus donos. Era o medo de que transmitisse uma doença para o bebê que esperavam. Os humanos eram muito ressabiados quanto a isso e era comum que agissem de tal forma. Porém, disse-lhe possuir a solução. Bastava que seguisse seus conselhos para que o mal fosse desfeito. Então poderia retornar sem receio, seria afagado e amado, teria uma vida de rei, até superior à de outrora.

O infeliz gato ouviu então o que precisaria fazer. Deveria encontrar um meio de infiltrar-se na casa. Para isso seria necessário esperar uns dias, até que seus antigos donos acreditassem que livraram-se dele. Não seria difícil então, pois estariam com a atenção voltada para seus problemas cotidianos.

O peludo companheiro falava-lhe com muita convicção e seriedade. Parecia realmente empenhado em auxiliá-lo.

Prontificou-se então a agir como o outro havia explicado. Já ia a meio do caminho quando raciocinou melhor. Não havia porque prejudicar àqueles que um dia foram bondosos para com ele. Mesmo sabendo que estaria abandonando uma tradição, desprezou os conselhos recebidos e dobrou uma rua na direção contrária à sua antiga morada. Um forte sentimento de alívio o invadiu.

Constelações

Os três viajantes prosseguiam. Não eram incansáveis, ao contrário, procuravam constantemente dar ânimo uns aos outros. Graças à harmonia que reinava entre eles nunca se perderam.

A mesma determinação em seus rostos impulsionava-os naquele flutuar incessante. Ultrapassaram inúmeras barreiras, foram tantas que acabaram por perder a lembrança de suas próprias origens, tornando a passagem bastante dolorosa.

Mesmo com toda a cautela, estiveram a ponto de esquecer-se da luz. Em uma única ocasião, mergulharam na alegoria de um sábio, que mais tarde descobriram ser um charlatão, um mero caçador. Chegaram a perder o contato com o infinito.

Após essa imprudência, souberam controlar melhor seus impulsos e tornaram-se desconfiados em relação a todos que encontravam em seu caminho.

Cruzavam constantemente com outros. As informações que traziam eram desencontradas e deixavam-nos ainda mais confusos. Todas as hipóteses eram demonstradas com tamanha confiança e eloqüência que chegavam a ser vislumbradas. Se fossem ingênuos, essas visões nunca desapareceriam. Entretanto, a concentração que adquiriram através das experiências impedia-nos de serem enredados em novo engodo.

Já sabiam como desmascarar utópicos. Os que traziam consigo fortunas desproporcionais perdiam sua franqueza a um simples sinal afirmativo.

Era-lhes fácil lutar contra a grande quantidade de apelos, pois a dúvida de sucumbir era atemorizante.

Após diversas tentativas, ansiavam pela verdade. Pressentiam que seria alcançada a qualquer instante. Esse sentimento não os deixava fraquejar. Havia a certeza de ser inútil retornar ao passado. O que fora abandonado deixara de existir. O arrependimento levaria-os ao nada absoluto. Mas essa impossibilidade era encarada com otimismo e não deixava que se perdessem em divagações.

Complicado mesmo era persistir na viagem quando deparavam-se ao acaso com um sonho. Era sempre tentador atirar-se a ele. Pelo fato de serem um trio, ao menos um deles possuía a lucidez necessária para impedir essa fuga.

Prosseguiam por serem sinceros. Não havia necessidade de esforçarem-se nesse sentido, estava mesmo em seus sentimentos. Se houvesse falsidade, o caminho seria imediatamente cortado e falhariam, tornando-se seres errantes.

A possibilidade de a ilusão ser total era remota. Existia, contudo, e ela seria capaz de desmoroná-los, perderiam a confiança e transformar-se-iam em inválidos. Por estarem de acordo quanto à ilusão, o medo era afastado.

Foram os abençoados pela oportunidade. Sabiam que o cansaço seria imenso e por vezes insuportável.

Exauridos, não esperavam deparar-se com a dúvida. Esta pouco a pouco invadiu suas mentes, diluiu seus espíritos e corroeu seus corpos. Não se deram conta do acontecido.

Quando perceberam, a sinceridade afastou-se. A coragem tornou-se melancólica e a esperança era agora uma pobre moribunda.

Assim cada um seguiu uma estrela diferente, deixando subverter-se pelo destino.

As Letras

O filósofo gostava imenso de suas letras. Observava-as maravilhado. Estava muito satisfeito com elas. Por isso nunca compreendeu completamente o porquê do acontecido, por mais que analisasse o caso.

Estivera trabalhando com elas há um longo tempo. As idéias vinham em profusão. Em breve sua mais importante teoria estaria completa. Estava orgulhoso e muito satisfeito com seu trabalho quando suas amadas letras embaralharam-se. E uma a uma começaram a abandonar os papéis.

Logo estavam por toda a parte. Não havia sobrado um livro, um escrito, nada. As páginas ficaram totalmente vazias.

Elas invadiram todos os aposentos. Cansaram-se do apartamento e seguiram para o elevador. Algumas atiraram-se pela janela e estatelaram-se no calçamento. O porteiro assustado não sabia o que fazer. Carros pararam para observar a insólita cena. Letras em profusão correndo ensandecidas.

E o sábio começou a procurá-las. Precisava de qualquer forma recuperar o que perdera, foram anos e anos de trabalhos, não podia deixá-las escapar assim.

Iniciou-se verdadeira perseguição. Aquelas que conseguia alcançar enfiava nos bolsos, o que não lhe servia de nada pois elas fugiam assim que eram capturadas. As pessoas à sua volta gritavam para que desistisse, diziam que era impossível, mas ele não parecia ouvir. Corria e pegava uma aqui e outra lá. E elas escapavam-lhe por entre os dedos.

O tempo foi passando e ele continuou em sua busca incessante, sem dar ouvidos ao apelo de ninguém. Tentou caçá-las até o fim de seus dias. Logicamente, em vão.

Traquinagem

Ganhara um novo brinquedo. A novidade do momento. Claro que era o sonho de todas as crianças.

O único senão era que não poderia levá-lo consigo, nem para se exibir para os amigos. E seus pais alertaram-lhe que, se o quebrasse, não haveria como consertar. A própria embalagem advertia quanto a isso, em letras garrafais.

Dentro da forma retangular podia observar o seu boneco. Era um pouco parecido com um que tivera anteriormente e, num descuido, partira-se em muitos pedaços e fora direto para a evacuação. Chorara tanto daquela vez, fora realmente um acidente... por saberem disso que os pais aceitaram comprar-lhe este, muito mais evoluído que aquele que se estragara.

Era o boneco de um homenzinho. Ele fazia coisas. Da outra vez era uma mulher e ela agia de modo estranho. Este tinha sido muito mais bem construído. Era elaborado.

O boneco era acordado todos os dias, no mesmo horário, por um despertador estridente. Quase sempre ele já tinha levantado antes mesmo do despertador tocar. Dormia com um pijama velho. Pelo que observara logo na primeira vez, o pequeno boneco tinha tanto apreço por seus pijamas que não ia às lojas comprar uns novos. Bem, em seguida ele ia para o banho, escovava os dentes e fazia a barba no chuveiro. O negócio da barba era engraçado. Ele raspava aqueles pelos todos os dias. E sempre brotavam novos no lugar. Mesmo assim, o boneco insistia em cortá-los e uma vez chegou até a ferir-se na manobra. Depois levava algum tempo vestindo-se e a roupa era bonita e bem cuidada. Perfumava-se e fazia tudo isso com muita pressa, como se o tempo fosse muito precioso.

Engolia rapidamente o café-da-manhã e saía. Dirigia seu carro sempre nos mesmos trajeto e direção. Ia com uma ar feliz. Vez ou outra ficava nervoso, abria a janela e gritava com outro motorista.

Estacionava num local já quase lotado por outros automóveis. Entrava então no prédio em que trabalhava, subia ao seu andar levado por um elevador, que estava sempre cheio de outros bonecos com roupas e pastas muito parecidas com as do seu. As cores variavam um pouco, então não parecia tratar-se de um uniforme.

Já na sua sala, o boneco sentava, começava a falar ao celular, mexer no computador e olhar para papéis que eram trazidos por bonecos que entravam de quando em quando. Havia uma boneca que entrava mais vezes do que os outros.

Seu boneco raramente saía daquela sala. Comia ali mesmo, ou não se alimentava. Parecia mesmo muito ocupado. As expressões de seu rosto variavam. Por vezes brigava, daí a pouco já estava rindo, mas sem parar de falar. Tomava muito café de uma máquina próxima que ficava no corredor. E o boneco ficava ali até o anoitecer, e sempre era um dos últimos a ir embora. Voltava para a casa com sua malinha onde levava o minúsculo computador e continuava falando ao celular.

Dentro do carro fazia uma cara emburrada, porque os outros veículos ficavam parados e não o deixavam passar.

Ao chegar ligava um aparelho que continha outros bonecos parecidos com ele. Seu boneco era fascinado por ele, pois até comia em sua frente. Parecia desejar ser igual àqueles bonecos presos dentro do aparelho.

Os telefones não paravam de tocar, e as discussões eram intermináveis. Seu boneco tinha muitos problemas para resolver, e tinha uma expressão preocupada durantes os telefonemas noturnos.

Quando o boneco deitava-se para dormir, rolava para lá e para cá por muito tempo. Uma vez o viu levantar-se para ver novamente o aparelho com os prisioneiros. Ficara assim até amanhecer. Mas fora só uma noite, ao menos que tivesse visto.

E o outro dia foi exatamente igual. E o próximo também. E assim aconteciam sempre as mesmas coisas. Será que estava com defeito?

Perguntou a um amigo que também ganhara um daqueles e ele disse que era assim mesmo, mas que se prestasse bastante atenção notaria que em alguns dias o boneco fazia coisas diferentes. Só era preciso estar atento, dar uma espiada de vez em quando.

Mesmo assim, estava decepcionado. Que coisa mais monótona! Precisava fazer alguma coisa.

Apesar de todas as recomendações dos pais, deu uma mexidinha no brinquedo para ver o que acontecia. Seu boneco fez uma cara muito assustada. Outros bonecos começaram a correr e atrapalharam-se todos. Isso com certeza era mais divertido.

Resolveu chacoalhar com força. Aí a confusão foi total. Os componentes estavam quebrando e os bonecos também. Fizeram muito escândalo quando alguns deles pararam de funcionar. Já não sabia qual era o seu boneco, mas estava tão entretido que esquecera-se dele.

Foi seu pai quem o pegou fazendo exatamente o contrário do que lhe tinha ensinado. Levou uma bronca e tanto e seu brinquedo, que estava tornando-se tão empolgante, foi destruído no mesmo instante como castigo.

Dessa vez nem chorou. Não tinha importância. No fundo era mesmo um brinquedo bobo.

Competição

Em instantes seria dada a largada. Essa prova seria uma das mais importantes de sua carreira. Estava orgulhoso de sua triunfante trajetória e era considerado um dos favoritos. Possuía a certeza da vitória, essa convicção sempre o impulsionara.

Seu animal estava bem preparado. Alimentara-o com o que havia de melhor para deixá-lo saudável e vigoroso. As pernas estavam totalmente alongadas e musculosas. As asas suportariam bem, com suas vistosas penas douradas que à primeira vista pareciam frágeis, mas na realidade eram como aço. A visão era capaz de atravessar objetos. Até mesmo o olfato, o sentido mais difícil de ser desenvolvido, estava aguçadíssimo. Sua montaria era a mais bem equipada. Ao menos ele pensava assim. Otimismo e vitória eram as palavras que permaneciam em sua mente.

Pronto. Iniciara-se a grande corrida. Com o impulso que tomaram na partida alçaram vôo em instantes. Cortar o vento daquela maneira era uma sensação maravilhosa. Alcançaram rapidamente as nuvens.

Seus rivais também já estavam bem ao alto. A arrancada era o que menos contava. A resistência, a obstinação, o cuidado e um pouquinho de sorte eram mais importantes, entre outros tantos formatos computadorizados que a maioria possuía. Estavam prontos para o que aparecesse, o perigo e o espírito aventureiro faziam parte do jogo. E os organizadores estavam sendo cada vez mais rígidos nas adversidades.

Logo avistaram uma enorme nuvem negra e quase que simultaneamente os relâmpagos e trovões trouxeram consigo a chuva torrencial. Tanto o cavaleiro quanto seu robusto animal procuraram manter os olhos bem abertos para não perder de vista o trajeto. Nem mesmo o granizo atrapalhou. Estava fácil até então, nada além do esperado.

O que veio a seguir foi mais empolgante. Uma estrela brilhava em toda sua plenitude. Desviaram-se por pouco. Algumas penas chegaram a chamuscar-se nas pontas. Um dos adversários fora esturricado. Um odor terrível impregnava o ar, era o cheiro de carne e borracha queimadas. Dava náuseas e também pena pois deveria ser um de seus conhecidos. Apesar disso, era um concorrente a menos.

Logo um dragão dos tempos antigos surgiu. O fogo que soltava pela bocarra era intenso. Tiveram o reflexo de passar por baixo dele e fora a escolha acertada. Os que subiram sofreram as conseqüências do erro.

Iam muito bem, até enroscar-se na árvore cheia de frutos que, esmagados com o choque, lambuzaram-nos e atraíram os pássaros que davam-lhes violentas bicadas. Conseguiram livrar-se deles, porém perderam um pouco de velocidade. Atrasar-se por causa de uma planta, esfrangalhava os nervos de qualquer um. Era até vergonhoso.

Espantou esses pensamentos negativos e seguiu. Muito aliviado sentiu-se ao avistar o mar. Num mergulho rápido, livraram-se do melado daqueles frutos exóticos e desconhecidos até então. Esperava não deparar-se com eles depois que tudo terminasse, não eram de aspecto nem aroma agradável e, imperdoável, prejudicaram sua performance.

Livres daquela gosma, quase foram tragados por uma enorme baleia de rinha. Novamente escaparam ilesos.

Ainda avistou em meio ao oceano um dos braços do que parecia ser um polvo, daqueles utilizados nos condenados à morte. A baleia era um brinquedo perto daquilo. Felicitou-se por encontrar a ela ao invés do monstro marinho de incontáveis garras.

Escaparam também das crias de demônios, com seus dentes destacando-se na negrura da noite que caíra sobre eles rapidamente. Graças a isso, conseguiam enxergá-los. Era um exercício de velocidade e atenção.

Naquela escuridão, em breve estavam aos trambolhões com outros seres. Não conseguira compreender exatamente do que se tratava, só que eram bastante fortes e vinham de todos os lados. Apesar de em grande quantidade, não conseguiram derrubá-los. Um deles acabou por arranhar o focinho de seu animal. Fora superficial, mas podiam ter passado sem essa.

Foi com grande alívio que avistaram terra, onde poderiam fazer uma breve pausa. Exaustos, precisavam mesmo de um pouco de ar e descanso. Porém, para seu desespero, tratava-se de areia movediça, que os tragou assim que se encostaram à superfície que parecera tão firme. Conheceram o amargo sabor da derrota.

A Indecisão do Juiz

Começou com um pacote lacrado, comum, enviado pelo correio. Ao abri-lo, tomou um susto. Já não tinha mais idade nem paciência para uma brincadeira de mau gosto como aquela. Era um senhor respeitado por todos. Fora magistrado por muitos anos e tudo que conquistara viera pelo seu próprio esforço, longas noites passadas em claro, estudando e aprendendo sempre, para que não cometesse injustiças. E agora, aquilo. Resolveu desconsiderar. Uma piada infame.

Alguns dias depois, outro incidente. Em meio a um caso que se arrastava com a morosidade habitual da Justiça, cega ou não, lenta sempre. Um dos jurados levantara-se em meio à audiência e, olhando-o fixamente, murmurara as estranhas palavras. Estas tomaram-lhe a mente por um bom período. Funesto fora o fato de que nenhum dos presentes parecera ter ouvido ou notado qualquer anormalidade.

Dirigindo em meio ao caótico trânsito da cidade, sintonizara em sua estação de rádio predileta. De repente, a música parou e ele ouviu, atônito, a mesma voz, agora alta e clara. A frase idêntica foi repetida. Já estava parecendo um refrão daquelas músicas cansativas que se repetem sem parar, mesmo depois de horas passadas desde que as ouvimos.

Era um homem prático e pôs-se a considerar a situação racionalmente. Havia um problema. Faltava apenas achar a resposta. O caminho a seguir. Não poderia viver assustado com a possibilidade de, a qualquer momento, em qualquer lugar, ser perseguido pelas duras palavras.

A primeira hipótese, e talvez a mais sensata, era a de que estava exausto pelo trabalho incessante e aquela era uma forma do stress manifestar-se. A segunda, a que o deixava temeroso, era a de que tinha perdido completamente o juízo. De qualquer maneira, estava com certeza sofrendo alucinações.

Pensou em contar à esposa, mas esta ficaria assustada e atormentada. Pensaria que ele tinha enlouquecido, nem sabia qual seria sua reação. No fundo tinha vergonha de falar sobre isso com qualquer pessoa. Seus filhos achariam que ficara gagá. Não pôde deixar de rir-se com a idéia. Essa juventude... mas um dia também fora moço e compreendia.

Talvez se procurasse um psicólogo, uma pessoa especializada, um psiquiatra até, provavelmente já estariam acostumados com situações como aquela. Essa solução era a mais acertada.

Havia desligado o rádio há tempos e agora estava parado no farol vermelho, enquanto considerava tais hipóteses e saídas para o que lhe afligia. Qual não foi seu espanto quando, soando incrivelmente nítida, aquela voz agora já familiar voltou. Sua audição não era capaz de distinguir de onde ela provinha. Mas o que ouviu nesse instante era diferente. A voz alertava-o de que não havia mais tempo.

Por fim o farol abriu. Estava realmente atemorizado. O que aconteceu a seguir foi muito rápido. Um caminhão vinha na contramão e atirou-se contra seu automóvel. Sentiu sua alma abandonar o corpo que fora tomado por convulsões e por fim quedara-se inerte. Uma gigantesca mão estendeu-se para ele por entre as nuvens. Subiu aos céus com um derradeiro pensamento: deveria ter dado maior atenção à mensagem. Mas onde estava a garantia de que aquele tinha sido um bom conselho?

A Grande Mãe

Um profundo suspiro fez-se ouvir. Ali estava ela, cercada por suas crias. As crianças causavam tamanho alvoroço, moviam-se tão rapidamente que era impossível determinar de quantas se tratava. Rodeavam a mulher e subiam-lhe ao colo, pulavam em seu pescoço, abraçavam-na, beijavam-na, lambiam-na numa atividade ininterrupta.

Grande parte delas comia, bebia, urinava... Outras realizavam estranhos movimentos de braços e pernas, como se algo as impulsionasse e impedisse-as de parar. Havia as que gritavam. As que cantavam. Moviam-se em ritmo acelerado e eram aparentemente incansáveis. Uma ou outra estava quieta e era difícil distingüi-las no meio daquele tumulto.

O rosto da mulher era impressionante. Não por ter belas feições, eram até bastante comuns. O chocante era que continha um misto de emoções, variando umas atrás das outras, alternando-se de forma que sua face parecia composta de máscaras que se sucediam. Demonstrava amor, seguiam-se resignação, alegria, misericórdia, serenidade, coragem, desespero, paz, sofrimento... aparentemente todos os sentimentos inerentes ao ser humano.

Apesar desse semblante tão variável, seu corpo estava completamente imóvel. Uma estátua viva, sentada em uma enorme poltrona, sendo como que sugada por aquelas criaturinhas impacientes. Estas não sossegavam por um segundo sequer. Não era possível saber-lhes a idade, nem mesmo a da mulher.

Súbito, uma menina começou a chorar, não em um lamento manso, mas em gemidos escandalosamente altos e aflitos, como se sentisse dor ou medo infinitos. Logo foi seguida por outra criança e em instantes todos berravam a plenos pulmões.

Como que em resposta, o corpo daquela mulher, que já trazia no ventre protuberante uma nova vida, ergueu-se e com um simples gesto fez calar a todos. As crianças retiraram-se, silenciosa e organizadamente. A mãe foi logo atrás.

Cortinas negras caíram pesadamente sobre o cenário. A platéia retirou-se com expressão contemplativa. Em seu íntimo, sentiam-se constrangidos. Apesar dos presentes que todos levaram para seus lares aconchegantes, a dúvida instalara-se.

Condenado

Sabia que não havia o que temer. Pagara, penosamente, por anos e anos. Não dava para apagar o que passou. Cabia-lhe, sim, buscar uma existência livre de seus antigos erros.

À luz do dia parecia muito simples. Uma decisão tomada conscientemente. Porém os fantasmas inflavam-se a tal ponto na sua insônia que tornavam impossível parar de pensar. A dor, a comiseração, a angústia, o medo, um terror puro o acometia e fazia seu corpo todo tremer e seus olhos derramarem lágrimas incontrolavelmente. As lembranças eram vivas demais, as sombras envolviam-no até paralisar o que restava de sua lucidez e dar lugar à tortura que se tornara viver.

Se pudesse destruir todo o álcool do mundo e provar o mal que poderia causar... mas ele mesmo só tomara consciência depois daquele ato terrível. Via o sangue, os corpos retorcidos, os gritos por clemência. Soluçavam ainda pelo socorro que não chegara, pois deveria ter partido dele mesmo, o seu eu ausente que fora cruel sem o sentir. Chamaram-no de assassino covarde, acusaram-no de não possuir sentimentos. Oh, mas ele os tinha, preferia enormemente não tê-los, e por isso sofria, rezava e amaldiçoava-se ao mesmo tempo, numa luta sem trégua com sua consciência estraçalhada.

Ainda via a mulher implorando, humilhando-se, a boca escorrendo saliva, os olhos esbugalhados e vermelhos, pedindo que deixasse a criança viva, que salvasse a criança, que pelo menos deixasse livre a criança... Seu filho, nosso filho, nosso bebê, que chorava e esperneava, sem entender mas sentindo. E ele fora um canalha, uma besta, crédulo às infâmias e completamente esquecido de quem o olhava com tanto carinho, daqueles que lhe tinham amor.

Quando tentava apagar a mente, e conhecia vários métodos para isso, senão tornar-se-ia impossível prosseguir, ecoava a risada do palhaço, ritmada, constante, ferindo o que lhe restava dos neurônios. Como na escuridão vazia que alcançava nesses abismos sobrevivia esse riso infernal, isso era inalcançável para sua compreensão.

Estava reabilitado, poderia seguir sozinho. Quem julgaria algo assim? Como pensavam aqueles doutores serem capazes de avaliar se estava curado ou não? E existia esse limite, porventura estavam dentro dele para sentir a imensidão do seu sofrimento?

Tentara explicar-se, não lhe prestaram atenção, era uma pedra no sapato, um nódulo a ser exterminado, um objeto a ser descartado. Diziam-lhe que era tudo normal, perfeitamente razoável o seu estado de espírito, era de se esperar e adeus, boa sorte, siga em frente e isso era tudo e o bastante.

Havia de mostrar o quão serena seria a passagem... e uma sombra perspassava-lhe no olhar sempre que pensava na saída que encontrara. Bela e certeira. E seriam muitos os palhaços a rirem-se com ele e não mais para ele, não mais dele. Estava quase pronto.

Fim

Lindo amanhecer. Cansa-se de chorar pelo passado. O momento é de ação. Levanta-se. Ainda embriagada... Agonia. Finalmente amanhece. Outro dia nublado? Todos são. Seu coração, sua alma está envolta em nuvens. Abandono. A casa, uma tristeza só de olhar. Ratazanas impiedosas atacaram a despensa. O que sobrou...

Olhar-se ao espelho? Não é mais necessário. Basta ver as próprias mãos. Nodosas, encarquilhadas. Manchas. Velhice? Sobretudo solidão. Filhos, netos? Esquecera-se de seus rostos.

Caixões. Pessoas sendo levadas por alças metálicas. Quem a carregaria?

Um odor nauseante impregna o ambiente. De onde vem? De si. Da velhinha simpática da casa das flores. Árvores, pássaros, orquídeas, principalmente rosas. Quantas vezes espetara-se ao cuidá-las... Tão belas, tão hostis, por vezes.

Hoje veste negro. Luto? Não. É dia de festa, libertação. Comemora que enfim deixará de pensar. Não quer mais pensar. E não há muito para recordar. Ah, a mente a engana. Ilude. Lembra-se muito bem. “Vovó, vovó”. “Mamãe, te amo”. Tão longe, tão longe...

Sente-se suja. Ora, tudo está imundo mesmo. Onde estaria a caixinha? Não, não será difícil encontrar. Prateleira de cima, à esquerda. Claro. Longe dos netinhos...

Sobrara somente o gato. Amigo. Às vezes a atraiçoa. Porém, sempre retorna. Talvez sinta falta da casa e não dela. E ele sabe que ali há ratos. Gordos, apetitosos. Por vezes aparece com uma barata. Deve ser para o sustento dos dois. Esquece-se do bichano e, tateando, finalmente encontra os remédios. De quantos precisará? Tomará os que tiver. São tão caros... Ao menos desta vez serão bem utilizados. E, ainda bem, a garrafa ainda encontra-se pela metade. Será suficiente.

Passeio entre flores

Duas crianças caminham de mãos dadas. O campo irradia vida sob o ar primaveril que as envolve e traz o calor do sol às bochechas rosadas.

A menina carrega algo cuidadosamente na mão esquerda bem apertada, enquanto com a direita agarra a mão do garoto. Olham firmemente à frente, como se tivessem a certeza de por onde ir e um objetivo a alcançar. Vão com passos fortes e seguros. A única coisa que parece preocupar a ambos é não deixar escapar o que quer que a garota leva com tamanha cautela.

Eis que chegam aos pés e à sombra de um enorme chorão. A árvore parece acolhê-los como se já os esperasse. Sorri calma e majestosa por ser muito antiga. Sorri até que lágrimas umedecem seu tronco nodoso.

Ali o pequeno casal senta-se. Observam-se mutuamente, encantados. Era como se tivessem esperado séculos por aquele instante, para eles sagrado.

Um pássaro aproxima-se e foge ao vê-los, que percebem e riem alto, um riso cristalino que percorre o ar e alcança uma família que passeia por ali, ansiosa por um piquenique num dia esplendoroso como aquele.

Então o menino deita-se na grama. Seu par faz o mesmo.

Eis que surge um bebê engatinhando, curioso. Aproxima-se e abre a mão da garota, que não reage. O pequeno intruso engole rapidamente o que ela escondera com tanto cuidado e sai balbuciando contente atrás de sua mãe que vinha logo atrás.

O rosto da menina transforma-se numa máscara de dor indescritível. A boca abre-se como se fosse gritar enquanto vê o seu amigo (amor) ser envolvido por uma névoa, tornar-se transparente e desaparecer por completo, fitando-a sempre com olhos enormes e impotentes

O Perseguido

Procurara de todas as maneiras livrar-se dela. Se soubesse o martírio que seria essa mulher na sua vida, jamais teriam sido namorados, nem um beijo sequer teria lhe dado. Isso porque foram somente alguns meses de convívio. E ela grudara-se nele qual sanguessuga, tornando a relação asfixiante. Para ele seria impossível conviver com uma pessoa assim. Não estava mais apaixonado, nem por ela nem por outra. Simplesmente não suportava sequer o som de sua voz. Aqueles modos de tentar agradá-lo a qualquer custo só serviam para afastá-lo. Sentia náuseas ao tê-la por perto. Parecia uma alucinada ao ouvir que ele não a queria mais. Tivera que jogar suas coisas porta afora, arrastá-la dali quase a pontapés. E a infeliz mesmo assim não desistira de querer voltar.

Um toque do telefone e lá vinham as lamentações, as súplicas, as juras de amor eterno, aquela ladainha infinita que o atormentava. Piores eram as vezes em que deparava-se com ela ao pé da porta pela manhã, dormindo sobre o capacho. Não sabia como ela conseguia driblar o porteiro, já dera ordens de não deixá-la subir de jeito algum e estava cansado de brigar com o homem por causa disso.

Como se não bastasse, volta e meia esbarrava com ela “por acaso”. Ah, claro, mera coincidência. Deviam ser coincidências também as cartas que recebia quase diariamente!

Só queria de volta seu sossego, poder estar só ou acompanhado como bem lhe aprouvesse. Nada! Ela sempre estava ali, seguindo-lhe os passos, assombrando-o em vida.

Quando o vira um dia com outra fora um escândalo. Nem uma esposa traída comportaria-se daquela forma. E sua companhia reagira com muita compostura, o que fez a outra humilhar-se ainda mais, ainda por cima em público. A pobre perdera totalmente o bom senso, a auto-estima ou seja lá o que for que toda mulher normal possuía. Ela já não era nenhuma garotinha, tinha idade suficiente para compreender uma simples palavra: acabou!

Por medonho que fosse, passaram-se anos e a perseguição continuava implacável. Insistia e continuava como se tivessem rompido no dia anterior. Ele já trocara a linha do telefone. Mudara-se. Mas ela sempre conseguia localizá-lo. Será que aquele tormento nunca teria fim?

Todos os seus amigos e até meros conhecidos já sabiam da história. Não havia como esconder, pois volta e meia lá estava ela. Chegava aos lugares em que ele ia antes dele! Outras vezes era como um cachorrinho que persegue o dono atrás de um afago qualquer.

Ele não era responsável por ela. Mandara-a freqüentemente procurar tratamento, um psiquiatra poderia ajudá-la, se Deus quisesse a internaria num hospício a quilômetros de distância.

Quando estava sem paciência (invariavelmente) mandava-a para o inferno, xingava-a... de nada adiantava.

Ele notara o quanto ela emagrecera, as fundas olheiras, o descaso com a própria aparência. Seria de dar pena se não fosse tão revoltante. Estava pagando os pecados que cometera e os que não cometera. Quem sabe um carma pesado que carregava? Ria-se da situação absurda em que se encontrava.

O único sentimento que ela conseguia despertar-lhe era desprezo, que logo se transformaria em indiferença.

Até que um dia percebeu-se livre. Cessaram os telefonemas angustiados, as cartas suplicantes, as aparições inconvenientes e os olhares apaixonados e magoados. Por fim, podia respirar aliviado. Acordar, ir tranqüilamente ao trabalho, sair com uma garota... ter uma vida normal. Às vezes achava que a qualquer momento ela surgiria, e começaria tudo novamente. Chegava a ter pesadelos com isso.

Porém, os dias transformaram-se em meses, passaram-se as estações, completou-se um ano sem sinal daquela mulher que havia sido sua pior tortura.

Foi aí que o inexplicável aconteceu. Ele estava sentindo saudades dela! Essa sensação começou de mansinho mas breve invadiu-o por completo. Sentia falta de tê-la por perto. Queria vê-la. Ansiava por tocá-la. Os pesadelos deram lugar a sonhos maravilhosos em que viviam e passeavam juntos. Sempre despertava deles com uma terrível sensação de vazio. Era muita ironia. Quisera tanto afastá-la, livrar-se dela e agora a queria para si. Não achava graça e nem suportava a companhia de nenhuma outra. E culpava-se seguidamente por não ter ao menos seu telefone, não saber de seu endereço, nada. Ela que sempre vigiara todos os seus passos... Tolo que fora, deixara-a sumir no espaço. Não tinha pista alguma. Interrogava os amigos, os novos e antigos conhecidos, ninguém sabia informá-lo de seu paradeiro.

Sabia que a encontraria. Buscaria incansavelmente por ela. Por todos os escaninhos do mundo. A vida não tinha o menor encanto sem ela. Seus dias tornaram-se completamente vazios.

Pensava em quão próximo estava do encontro enquanto observava suas próprias mãos marcadas pela idade avançada. Tinha plena convicção de achá-la. Absoluta certeza. Não havia a menor dúvida quanto a isso.

Foi com essa certeza no olhar que o enterraram. E ninguém reparou numa senhora alinhada de feições muito tristes que comparecera ao funeral. De tempos em tempos ela levaria flores ao túmulo daquele que fora seu único amor.






Realeza




A lassidão dominava. Tinha tudo. Como era bom. Podia fazer qualquer coisa. Todos o aclamavam. Era verdadeira adoração.

Os prazeres eram inúmeros. Não podia pensar em sua vida de outra forma. Nascera para gozar de toda a plenitude da existência. A fortuna lhe fora totalmente favorável. E isso seria eterno. Eterno. Palavra que soava maravilhosa. Ter o poder completo e irrestrito, ser inalcançável, absoluto, realmente era lindo. Ficar horas se divertindo e sempre com novidades.

As descobertas eram incríveis e ansiava por cada momento de uma forma tranqüila, pois sabia que estava correto, nunca falhara, não era de sua natureza. Sendo o ser divino, só reinava o êxtase e a magnitude.

Era infalível e por vezes implacável. Não tolerava mesquinharias, maldade, arrogância. Punia com toda a justiça que sua sabedoria proporcionava. Tinha como meta erradicar a falta de caráter, os desvios de conduta, a loucura, a doença... o mal, enfim. Era senhor do destino.

A morte por asfixia era a pena mais utilizada, seguida pelo cárcere perpétuo. Sentia muito orgulho de seu poder e atuar dessa forma era imensamente agradável. Não compreendia a dor, nem sequer aceitava que existisse. Era uma grande e tola mentira.

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Devoção

A pequena embarcação velozmente cortava o mar tão azul que mal se distinguia do céu. O jovem ia solitário e confiante, certo de que conseguiria. Mataria o demônio que assombrava seu vilarejo há tantos anos que as lembranças perdiam-se na memória dos anciãos. Ele era o único que treinara o suficiente. Desde menino, em fraldas, singrava os mares acompanhado dos outros, em diversas viagens com os pescadores e seu pai. Saudade e orgulho da família, tão simples e sábia, fizeram vir lágrimas a seus olhos. Mas aquele não era o momento para sentimentalismo. Seria fiel a seu objetivo.

Logo adiante um grupo de golfinhos divertia-se nas ondas calmas. Daí a pouco ele quase podia tocá-los. Pareciam espertos mas inocentes naquela imensidão anil que continha tantos perigos. Brincaram mais um pouco e foram embora emitindo seus sons característicos.

O rapaz partira antes do amanhecer. Despedira-se de todos, ouvira com atenção as recomendações apesar de já sabê-las de cor. Recebera a benção da mãe, preocupada como só as mães conseguem ficar. Seu pai olhara-o firmemente e sua voz soou dura e fria, mas o moço sabia que ele só tentava esconder a comoção que sua partida causava. Confiava na preparação, astúcia e coragem do filho e mesmo assim sentia-se emocionado. Afinal, ele fora o escolhido entre tantos por suas técnicas e bravura.

Afastou as lembranças e reparou na posição do sol. Agora já navegava há horas e o sol ao alto indicava que seria por volta de meio-dia. No horizonte nada avistava. Para quebrar a solidão apenas um pássaro que já o acompanhava há um bom tempo. Parecia torcer por sua vitória. Com ânimo renovado acelerou o pequeno barco. A qualquer momento o monstro poderia surgir e as armas estavam a postos.

Avistou o que parecia ser uma ilhota. Não sabia da existência dela, não constava dos mapas. Curiosidade e também a oportunidade de refugiar-se do calor do sol a pino fizeram com que tomasse aquela direção. Poderia recuperar as forças, sabia que precisaria delas mais adiante.

O estranho é que viu formas assemelhadas a pessoas acenando para ele. Era absurdo ali, no meio do oceano! Esfregou os olhos incrédulo, mas elas continuavam presentes, minúsculos pontinhos negros movendo-se ao longe.

À medida que aproximava-se, via nitidamente que eram reais, alongadas silhuetas, e sorriam! Magérrimos, o sorriso lhes tomava toda a face. Incrível que nunca os encontrasse anteriormente, nem àquela ilha, que não era tão pequena quanto parecera à primeira vista.

Solícitos, os habitantes vieram ajudá-lo a alcançar a terra firme. Saudaram-no e rodearam-no. Puseram-se a dançar e cantar à sua volta. A linguagem que utilizavam era totalmente desconhecida para ele. Traziam instrumentos exóticos e pareciam realmente amistosos.

Em seguida, trouxeram-lhe comida e água. Aceitou de bom grado, estava sentindo-se até importante com tantas manifestações de apreço ocasionadas por sua chegada.

Súbito, uma bela moça abraçou-o. Tinha a pele como seda, tão macia que sua vontade era a de deitar-se naquele aconchego de seios e pernas, mergulhar no perfume exalado pelos lustrosos cabelos. Essa mulher era diferente dos outros, não era tão esbelta, parecia talhada pelas mãos de um grandioso escultor.

Ela conduziu-o a uma casa rústica porém aconchegante. Era como se estivessem esperando-o o tempo todo. A jovem mulher não o deixava sozinho.

Trouxeram-lhe uma bebida forte e refrescante que o deixou inebriado de prazer. Adormeceu feliz, nos braços daquela que grudara-se a seu corpo como se a ele pertencesse. Foi um sono agradável e tranqüilo. Acordou ainda envolto naquele mistério, era como se tivesse encontrado o paraíso. Como se sua vida começasse verdadeiramente ali, aquele fosse seu lar, uma ilha maravilhosa em que todos eram felizes e agradecidos pelo que a natureza lhes oferecia.

Os dias foram passando e ele habituou-se a sua nova vida. Em breve queria formar uma família e fazer parte daquela harmonia, distante de preocupações.

Esquecera-se rapidamente da promessa que fizera. Seu passado parecia tão distante... Logo foi completamente apagado de sua memória.

Os que deixara para trás sentiam a tristeza pela perda daquele que partira para salvá-los do monstrengo que tornava-se cada vez mais violento e pavoroso. Ainda esperavam o retorno do jovem, mas o tempo lhes trouxe quase a certeza de que ele fora mais uma vítima daquele ser inclemente. Já nem tinham mais coragem de aproximar-se do mar. Abandonaram aquele lugar que só lhes trouxera desgraças.

Somente seus pais e sua noiva permaneceram. Os idosos, tomados pelo desgosto, adoeceram. A moça esforçava-se por dar-lhes alento e cuidava deles com todo o zelo. A mãe ainda rezava e implorava pela volta com vida de seu único filho. Seu pai perdera a consciência e já não havia mais o que fazer por ele, em dias faleceria. Já sua noiva, cansada, chorava todas as noites e recordava os momentos compartilhados, a infância passada lado a lado, os projetos para um futuro livre do sangue derramado pela demoníaca criatura. O amor a fazia ter esperança e dava-lhe confiança para continuar à espera.

Sombras Esquecidas

O universo em mutação. A temperatura oscilava tanto que passava rapidamente dos quarenta graus negativos para um calor dantesco. Todos estavam preparados para o futuro, era necessário. Muitos regozijavam-se, outros eram tomados pelo pânico. Afinal, ninguém conhecia a verdade, não havia a certeza. Especulava-se. Os sábios reuniam-se em sessões extenuantes. Caiam exaustos sobre as enormes mesas das salas de reunião.

Boatos corriam e atravessavam fronteiras. Entre o caos das paisagens o comentário comum era o de que homens do Estado guardavam o segredo.

E o desafio estava lançado. Aos poucos a população convenceu-se de que só lhe restava ter paciência e esperar. Porém, a desordem imperava e grande era o tormento nos corações.

Inúmeras batalhas sucediam-se. O sangue jorrava copiosamente. Homens tombavam aos milhares. E essa queda apenas aumentava o ódio e o rancor, tornando-os mais fortes. Erguiam-se e lutavam com maior ardor. A busca por conquistas era insaciável.

Nesse ponto, o clima era o que menos lhes interessava. Só tornava tudo um pouco mais trabalhoso. O lema era seguir adiante, a guerra havia de ser ganha, os obstáculos destruídos. A gana de vencer gerava aquela onda de destruição que não deixava sequer uma instalação intacta. Os meios de obter essa vitória eram impiedosos. Chegara-se a um extremo em que aeronaves, armas, munições, armaduras e combatentes equiparavam-se. As técnicas de combate, estratagemas, por mais astutos que fossem acabaram por igualar-se, tornando impossível a conclusão do que já se estendera por séculos.

Pairava aquela sensação de mudança. Os mais sagazes principiavam a compreender que por trás de toda aquela atividade havia um vazio que levava à estagnação. Até aqueles que ignoravam a estranheza da situação mantinham a esperança do segredo ser revelado e quem sabe haver uma solução. Os mais afoitos atiravam-se contra as muralhas, indignados por não terem como agir, impedir que tudo continuasse como estava, porque sentiam a mudança se aproximando e não suportavam mais a angústia da espera. Aqueles que até então aparentavam tranqüilidade estavam perdendo o juízo mais facilmente, ao contrário do que se poderia imaginar. Em algum ponto suas mentes falhavam permanentemente. Como esses distúrbios causavam grandes admoestações em tempos já difíceis o bastante, esses indivíduos eram excluídos, condenados ao isolamento perpétuo no espaço. Isso causava grande temor, era a pior desgraça que poderia abater-se sobre alguém.

Por fim a situação chegou ao seu limite. A paz instalava-se automaticamente. Soldados depuseram as armas. As feridas cicatrizaram. E veio o entendimento.

Aquele sonho não existia. A verdade estava ali, à frente de seus olhos cansados.

Sem temor, cabeças erguidas sentiram o calor do sol e aproveitaram a beleza da noite. Suas almas finalmente foram libertadas. Dormiram tranqüilos para nunca mais despertar.

Destino

Ao longe o soar de sinos. Em que parte desta terra ainda havia sinos? Isto sempre a deixara curiosa. Bom, não eram só os sinos que a encantavam e tornavam-na pensativa. A montanha era outro mistério. Tão docemente vinham os aromas daqueles lados... Sempre sonhara em conhecê-la. Mas a montanha era tão distante, tão nobre, tão bela... inalcançável, enfim. Como se aproximaria, presa que estava àquelas correntes, esfarrapadas suas vestes? Arrastando-se sempre, corroída e cheirando a abandono, despertando somente ojeriza, trazendo à lembrança daqueles seres radiantes que ainda existiam criaturas asquerosas como ela.

Mesmo sendo humilhada, escorraçada daquele universo que por vezes vislumbrara, não queria mal ao mundo. Amara cada gesto de compreensão que recebera. Não era só pela comida ou pela água. Sabia que existia alguma espécie de carinho, por mais que tentassem esconder os pequenos arroubos de afeição. Já recebera um afago, conhecera o calor da ternura. Não que tivessem sido muitos os acontecimentos desse gênero, mas foram suficientes para recordar e chorar de saudade. Saudade de um tempo em que ainda conseguia olhar para cima e vislumbrar as nuvens, o céu, as estrelas. Os pássaros também foram uma fonte de alegria. Já não os ouvia. Era pena. Somente dobravam os sinos. E aspirava o perfume que vinha da montanha.

Claro, seu lugar não era assim tão mau. Se o limpassem mais vezes poderia ser quase um lar. Se a água não viesse tão brusca, não fosse tão gelada... Mas era grata. Respirava, vivia, afinal. Dormia... Não se lembrava dos sonhos, mas sabia que os tinha e sentia que lhe davam forças para continuar a existir. E as feridas sempre cicatrizavam melhor e mais rapidamente quando podia dormir. Quase não sentia dor no sono, quando, exausta, por fim desmaiava em qualquer canto. Principalmente se as pedras não a lanhassem nesse momento. Antes não fossem tantas e tão pontiagudas. Uma vez caíra tão fundo que quase não conseguira voltar. Desde então não rolara mais, espremera-se, sempre com precaução. Procurava deslocar-se o menos possível, assim furtava-se de um imprevisto maior. Porque algumas coisas não havia como evitar. O frio, a umidade, as vezes em que se esqueceram de alimentá-la, lavá-la.

Numa outra ocasião realmente pensara que chegara ao fim. Dias seguidos transcorreram sem cuidados. Ficara fraca a ponto de não conseguir mover as mãos, precisava tanto delas... Mas sobreviveu. Fora apenas um erro, corrigido a tempo. Quase que por milagre algo chegou à sua boca, não tinha consciência do que nem de como, só de que a salvara.

Do que não gostava em absoluto era dos gritos. Os nomes, as pragas que lhe rogavam. As sujeiras que lhe jogavam. Isso sim a atormentava, mais que tudo. Afinal, ela não implorava, não chateava, aceitava seu destino sem lamentações que, sabia, seriam inúteis. Então por que tanto ódio? Tinha muito medo nessas horas, sentia pena de si mesma. Tentara acostumar-se, acontecia freqüentemente, mas era impossível para ela. As pedras feriam menos que essas palavras carregadas de desprezo. Sim, sabia, era horrenda de se ver, mas então qual o prazer que sentiam em espiar, era somente para massacrá-la? Não os via, mas sentia seus olhares, mesmo que não fossem seguidos de atos. Tinha pavor desses momentos em que a invadiam e a deixavam totalmente exposta ao ridículo, indefesa e em desespero. Tentava esconder-se, vinha o medo de cair, atrapalhava-se mais ainda e os risos eram altos e sarcásticos, pois sabiam o que ela estava tentando fazer.

Persistia porque ainda lhe restava esperança de vida. E no fundo do seu ser havia beleza, confiava que sim. Bondade, amor. Aprendera de alguma forma, estavam lá. E isso era suficiente. Sabia que por trás do seu ser que definhava um diamante existira e, não entendera nunca porque, perdera a chance de ser lapidado. Também não tinha mais importância. Continuaria lutando. Não podia ousar querer mais.