segunda-feira, 24 de março de 2008

Condenado

Sabia que não havia o que temer. Pagara, penosamente, por anos e anos. Não dava para apagar o que passou. Cabia-lhe, sim, buscar uma existência livre de seus antigos erros.

À luz do dia parecia muito simples. Uma decisão tomada conscientemente. Porém os fantasmas inflavam-se a tal ponto na sua insônia que tornavam impossível parar de pensar. A dor, a comiseração, a angústia, o medo, um terror puro o acometia e fazia seu corpo todo tremer e seus olhos derramarem lágrimas incontrolavelmente. As lembranças eram vivas demais, as sombras envolviam-no até paralisar o que restava de sua lucidez e dar lugar à tortura que se tornara viver.

Se pudesse destruir todo o álcool do mundo e provar o mal que poderia causar... mas ele mesmo só tomara consciência depois daquele ato terrível. Via o sangue, os corpos retorcidos, os gritos por clemência. Soluçavam ainda pelo socorro que não chegara, pois deveria ter partido dele mesmo, o seu eu ausente que fora cruel sem o sentir. Chamaram-no de assassino covarde, acusaram-no de não possuir sentimentos. Oh, mas ele os tinha, preferia enormemente não tê-los, e por isso sofria, rezava e amaldiçoava-se ao mesmo tempo, numa luta sem trégua com sua consciência estraçalhada.

Ainda via a mulher implorando, humilhando-se, a boca escorrendo saliva, os olhos esbugalhados e vermelhos, pedindo que deixasse a criança viva, que salvasse a criança, que pelo menos deixasse livre a criança... Seu filho, nosso filho, nosso bebê, que chorava e esperneava, sem entender mas sentindo. E ele fora um canalha, uma besta, crédulo às infâmias e completamente esquecido de quem o olhava com tanto carinho, daqueles que lhe tinham amor.

Quando tentava apagar a mente, e conhecia vários métodos para isso, senão tornar-se-ia impossível prosseguir, ecoava a risada do palhaço, ritmada, constante, ferindo o que lhe restava dos neurônios. Como na escuridão vazia que alcançava nesses abismos sobrevivia esse riso infernal, isso era inalcançável para sua compreensão.

Estava reabilitado, poderia seguir sozinho. Quem julgaria algo assim? Como pensavam aqueles doutores serem capazes de avaliar se estava curado ou não? E existia esse limite, porventura estavam dentro dele para sentir a imensidão do seu sofrimento?

Tentara explicar-se, não lhe prestaram atenção, era uma pedra no sapato, um nódulo a ser exterminado, um objeto a ser descartado. Diziam-lhe que era tudo normal, perfeitamente razoável o seu estado de espírito, era de se esperar e adeus, boa sorte, siga em frente e isso era tudo e o bastante.

Havia de mostrar o quão serena seria a passagem... e uma sombra perspassava-lhe no olhar sempre que pensava na saída que encontrara. Bela e certeira. E seriam muitos os palhaços a rirem-se com ele e não mais para ele, não mais dele. Estava quase pronto.

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