segunda-feira, 24 de março de 2008

Espera

Já estava quase no horário combinado. Não necessitava de relógios para sabê-lo. A noção de tempo incrustara-se em seu cérebro de forma irremediável.

Os corpos mutilados em suas respectivas macas, os membros em sacos plásticos traziam-lhe uma devastadora e extenuante sensação de mau agouro. Era isso mesmo. Como um presságio. Essa tolice permanecera intacta desde os tempos em que era comum acreditar nisso. Hoje, receberia no mínimo um atestado de esgotamento nervoso por pensar de forma tão abstrata. Poderia ser imediatamente afastado de suas funções. Agradeceu aos céus por seus pensamentos serem livres naquele local sagrado.

Não era de se deixar influenciar à vista de sangue ou matéria em decomposição. Nem no início de sua brilhante carreira fora assim. E isso já fora há um bom tempo. Estava sendo modesto. Fora há um tempo incalculável!

Lembrava-se perfeitamente das primeiras experiências. Exceto por detalhes insignificantes, por sinal descartados pelo escasso valor científico.

Primeiramente testaram combinações inusitadas para a época. O cruzamento de crianças com coelhos, resultando em pernas saltitantes em bebês com pouca sobrevida após o tumultuado nascimento. A imprensa local caíra matando sobre eles, cravando-lhes injúrias impressionantes. Mostravam-se dotados de uma imaginação mais fértil ainda que a dos pobres cientistas. Embora irritantes, foram úteis na medida em que lhes trouxeram notoriedade e rapidamente a atenção do mundo inteiro se voltara para suas façanhas. Não fora um período fácil, mas abrira muitas portas antes lacradas com as recusas que recebiam constantemente. Como toda novidade, a realidade tornara-se assustadora para aquelas mentes tacanhas de outrora. Precisavam primeiro digerir a idéia, acostumar-se com ela e, por fim, aceitá-la.

Após um período de quietude (onde a maioria aguardava silenciosamente, ávida por mudanças) tentaram com os cavalos em suas diversas mutações. O fruto fora animador. O sucesso surgiu em forma de crianças crescendo saudáveis, com suas cabeças de eqüídeos. Infelizmente, revelando-se mais tarde totalmente inférteis. A essa altura a movimentação genética era grande, e os próximos já aguardavam. Com total sucesso, obtiveram rãs com braços delicados de meninas e vigorosos de garotos. Estas cresceram e procriaram-se, trazendo o canal necessário para profundas transformações. Breve, eram vistos os cangurus com suas bolsas repletas de bebês semi-humanos. Cada operação bem sucedida era seguida de comemorações nos mais longínquos e inacessíveis locais. Aos poucos a população em geral conscientizava-se da importância da evolução das técnicas e criações.

E era fato notório a aversão pela antiquada idéia de perseguição de uma raça pura ou de uma espécie superior. Essa torpeza havia sido descartada, ou melhor, nem sequer fora cogitada. O que almejavam, sim, era um ser que sobrevivesse a toda forma de caso fortuito ou força maior. Homem ou Natureza, nada seria capaz de enfraquecê-lo, muito menos abatê-lo. Nem doenças, terremotos, atentados, o que fosse. O ser supremo passaria incólume pelas guerras, bomba atômica, toda sorte de desgraça que poderia destruir o frágil ser humano e erradicá-lo de uma vez por todas. Não era uma tarefa fácil. Levaria centenas, quiçá milhares de anos. E quem estava com pressa? Parodiando uma esquecida canção, tinham todo o tempo do mundo!

Os insetos, como era de se esperar, foram campeões no quesito resistência. Obviamente, a barata, tão rejeitada e inferiorizada pelos rústicos, como também já haviam antecipado, mostrara-se incrivelmente forte quando incorporada a couraças inquebrantáveis. Sua inteligência inferior veio pouco a pouco sendo incrementada através de sutis mudanças, chegando ao ponto de tornar-se equivalente à de um sábio pensador. Logo seu QI chegou a um nível avançado, sequer imaginado pelos desprovidos de fé na ciência. Na essência, remetia vagamente o observador à sua real origem, já então dotada de um rosto inteligente e perspicaz, digno de um grande homem.

Os vegetais foram também de extrema importância. Priorizaram-se os que não realizavam fotossíntese. Eliminando a presença do sol, ambicionava-se populacionar os outros planetas. Não deviam ater-se a pensamentos mesquinhos.

Houve casos frustrantes, como os das meninas-borboletas. Além de só originarem-se indivíduos do sexo feminino, estas, recém saídas da pupa, com rostinhos adoráveis e mostrando grande vigor, aos poucos eram possuídas por estranha e inesperada morbidez. A crisálida jazia abandonada, as asas erguiam-se esplendorosas, prestes a alçar vôo, e em pouco as borboletas eram acometidas pelo mesmo mal súbito que fazia fenecer uma a uma, conforme eram criadas. Estremeciam, pareciam amedrontadas e perdidas. Inexplicavelmente entorpecidas, quedavam-se com olhos fixos e sem proferir uma só palavra, nada que desse uma direção a ser percorrida para salvá-las. Foram feitas inúmeras tentativas, frustradas por sinal, pois nenhuma das meninas parecia ter condições psicológicas de voar. Instrumentalmente eram perfeitas. Porém, aparentavam ser a própria encarnação da beleza e do medo, tornando-se mais frágeis a cada insucesso. Foi com desgosto que abandonaram o projeto, visto que o próximo passo seria a miscigenação dessas meninas com o bebê-lagarto. Este sim, crescia a olhos vistos, tornava-se adulto e multiplicava-se facilmente entre os mais diversos grupos étnicos, gerando filhos encantadoramente extravagantes.

Os abutres foram uma grata exceção. Não se esperava grandes progressos com eles. Surpreenderam a todos. Além de colaborar com a limpeza dos laboratórios e dos ambientes aclimatados, deram-se bem nos cruzamentos com os garotos-leopardo, que há muito haviam se estabilizado. Dessa incrível combinação, rechaçada à primeira vista por tantos, surgiu um ser exótico e insaciável que desvendaria muitos mistérios da criação.

Ele esteve presente desde o início. Suportara, estoicamente, ele e sua talentosa equipe, as críticas acaloradas, os grupos de protesto... Estes foram os piores. Brotavam por todas as partes, como ervas daninhas mal arrancadas. Protestavam pelos direitos dos homens, mulheres, crianças, fetos, animais, insetos, vegetais. Diziam-se protetores do livre-arbítrio dos seres. Até mesmo dos inanimados! Era uma insensatez. Viam-se assolados pelos defensores dos direitos dos cogumelos e, quando podiam respirar por um segundo, vinham outros com os direitos das amebas! Era impressionante a quantidade de criaturas defensáveis existentes no planeta... Agora riam-se a valer desses inoportunos, mas passaram por apuros memoráveis. Todas as coisas eram alçadas à elevadíssima categoria de seres divinos e intocáveis. Até ser criada a lei que dera um basta nessas manifestações incongruentes. Os gritos alucinados de “salvem as almas” deram lugar a indecisos murmúrios. Vencidos, arrastaram-se à sombra da própria mediocridade. As regras estavam bastante claras e, mesmo às custas de vários banimentos e mortes, foram rigidamente cumpridas. Os que sobraram arrependeram-se sinceramente e não causaram mais distorções ao trabalho árduo que o seu grupo de acadêmicos vinha desempenhando em prol de um pujante futuro.

Todos os envolvidos foram devidamente substituídos por seus clones, ao longo das sucessivas gerações, dotados das mesmíssimas informações dos antecessores. Sentia-se honrado e vaidoso por participar do seleto grupo.

Entretanto, as adversidades enfrentadas eram mais profundas do que essas. Eram verdadeiros baldes de água fria no entusiasmo da equipe. Os renomados cientistas de todo o planeta chegaram a um impasse. Eram tomados pela dúvida que a todos mortificava.

Os espécimes deslumbrantes, agora uma assombrosa realidade, eram contidos através da milenar técnica da gratificação. Os que se esforçavam o suficiente eram agraciados com determinada cota de benefícios. Tinham plena consciência do processo e mostravam-se satisfeitos. Assim eram submetidos ao controle e nunca houvera riscos desnecessários. As vivências negativas eram sistematicamente apagadas de suas memórias. O limite do quanto podiam suportar era sagrado. Não podiam negligenciar a inteligência desses seres, mesmo com toda a disciplina que lhes fora imposta. A cota de prazer devida a cada um deles era um direito nato. Fora assim até então. Até os grandes nomes da ciência perceberem que não haveria mais evolução sem sofrimento. E isso implicava em correr riscos. Todos os riscos que sempre evitaram. Não se estava pensando em pequenas frustrações. E sim, naquelas que levariam as criações queridas e aplaudidas ao desespero visceral. Fizeram cálculos infindáveis, estudaram fórmulas complexas. Infelizmente, por mais que pensassem e repensassem, a solução para a estagnação a que chegaram era essa. Se as criaturas não sentissem medo, ou melhor, um terror quase ilimitado, não seriam capazes de progredir. E séculos de trabalho incessante evaporar-se-iam rapidamente. Era exatamente isso o que pretendiam evitar, o impensável, o absurdo, o impossível. Apesar de ser a única saída, trazia aos eminentes pensadores um tremendo mal-estar. Fazer suas amadas criaturas penarem, passando por extremas e antecipadas privações, inevitavelmente traria a destruição a inúmeras delas. E, pior, a única alternativa seria desistir. Destruir o encanto que os impulsionara até então. Abrir mão do esplendor almejado para o futuro próximo, pelo qual lutaram arduamente, aquele ao qual se prenderam por centenas de anos. Desde os primórdios, quando os cruzamentos eram feitos na clandestinidade, naquela época em que a humanidade não estava pronta para a grandiosidade da qual sequer suspeitava. Somente eles, os escolhidos, os que possuíam a visão do porvindouro, sabiam de antemão da busca em que se embrenhariam desde então. Dos bastidores, de minoria tímida transformaram-se no correr do tempo em uma só voz. Os lúcidos acompanharam avidamente essa empreitada.

Chegara o instante de ser sincero frente aos próprios pensamentos. A garantia de serem bem sucedidos não mais vigorava. Era agora uma simples questão de arriscar ou não. Como em um jogo de azar. Esse desvio inesperado era estarrecedor. Sempre mantiveram o controle. E agora? E agora a difícil decisão na realidade não dava a menor margem a dúvidas. Era isso ou desistir de todas as metas traçadas meticulosamente. E desistir traria um fracasso irremediável.

Respirou profundamente, procurando recobrar a paz de espírito. Finalmente era chamado a comparecer. Não possuía todas as respostas. Todavia, tomara-se da firme convicção de prosseguir. A qualquer custo. Seu dever seria o de reanimar o time e provar-lhe o quanto seria benéfica a mudança de atitude perante as vidas que trouxeram ao mundo. Esclarecer seus condiscípulos sobre a certeza do triunfo. De forma que só ele soubesse dos inevitáveis riscos. Manteria acesa a crença de que seus planos continuavam infalíveis. Mesmo que por trás disso beirassem o abismo inexorável. Era extremamente necessária a omissão dessa sinistra informação.

Com um largo e tranqüilizador sorriso, dirigiu-se à ponta da enorme mesa de reuniões. Atraiu todas as atenções para seu mais eloqüente discurso, capaz de inflamar o espírito de cada um dos presentes com o gosto da vitória que se aproximava. Foi também a maior e mais deslavada mentira que saiu de seus lábios em todas as suas existências.

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