segunda-feira, 24 de março de 2008

Destino

Ao longe o soar de sinos. Em que parte desta terra ainda havia sinos? Isto sempre a deixara curiosa. Bom, não eram só os sinos que a encantavam e tornavam-na pensativa. A montanha era outro mistério. Tão docemente vinham os aromas daqueles lados... Sempre sonhara em conhecê-la. Mas a montanha era tão distante, tão nobre, tão bela... inalcançável, enfim. Como se aproximaria, presa que estava àquelas correntes, esfarrapadas suas vestes? Arrastando-se sempre, corroída e cheirando a abandono, despertando somente ojeriza, trazendo à lembrança daqueles seres radiantes que ainda existiam criaturas asquerosas como ela.

Mesmo sendo humilhada, escorraçada daquele universo que por vezes vislumbrara, não queria mal ao mundo. Amara cada gesto de compreensão que recebera. Não era só pela comida ou pela água. Sabia que existia alguma espécie de carinho, por mais que tentassem esconder os pequenos arroubos de afeição. Já recebera um afago, conhecera o calor da ternura. Não que tivessem sido muitos os acontecimentos desse gênero, mas foram suficientes para recordar e chorar de saudade. Saudade de um tempo em que ainda conseguia olhar para cima e vislumbrar as nuvens, o céu, as estrelas. Os pássaros também foram uma fonte de alegria. Já não os ouvia. Era pena. Somente dobravam os sinos. E aspirava o perfume que vinha da montanha.

Claro, seu lugar não era assim tão mau. Se o limpassem mais vezes poderia ser quase um lar. Se a água não viesse tão brusca, não fosse tão gelada... Mas era grata. Respirava, vivia, afinal. Dormia... Não se lembrava dos sonhos, mas sabia que os tinha e sentia que lhe davam forças para continuar a existir. E as feridas sempre cicatrizavam melhor e mais rapidamente quando podia dormir. Quase não sentia dor no sono, quando, exausta, por fim desmaiava em qualquer canto. Principalmente se as pedras não a lanhassem nesse momento. Antes não fossem tantas e tão pontiagudas. Uma vez caíra tão fundo que quase não conseguira voltar. Desde então não rolara mais, espremera-se, sempre com precaução. Procurava deslocar-se o menos possível, assim furtava-se de um imprevisto maior. Porque algumas coisas não havia como evitar. O frio, a umidade, as vezes em que se esqueceram de alimentá-la, lavá-la.

Numa outra ocasião realmente pensara que chegara ao fim. Dias seguidos transcorreram sem cuidados. Ficara fraca a ponto de não conseguir mover as mãos, precisava tanto delas... Mas sobreviveu. Fora apenas um erro, corrigido a tempo. Quase que por milagre algo chegou à sua boca, não tinha consciência do que nem de como, só de que a salvara.

Do que não gostava em absoluto era dos gritos. Os nomes, as pragas que lhe rogavam. As sujeiras que lhe jogavam. Isso sim a atormentava, mais que tudo. Afinal, ela não implorava, não chateava, aceitava seu destino sem lamentações que, sabia, seriam inúteis. Então por que tanto ódio? Tinha muito medo nessas horas, sentia pena de si mesma. Tentara acostumar-se, acontecia freqüentemente, mas era impossível para ela. As pedras feriam menos que essas palavras carregadas de desprezo. Sim, sabia, era horrenda de se ver, mas então qual o prazer que sentiam em espiar, era somente para massacrá-la? Não os via, mas sentia seus olhares, mesmo que não fossem seguidos de atos. Tinha pavor desses momentos em que a invadiam e a deixavam totalmente exposta ao ridículo, indefesa e em desespero. Tentava esconder-se, vinha o medo de cair, atrapalhava-se mais ainda e os risos eram altos e sarcásticos, pois sabiam o que ela estava tentando fazer.

Persistia porque ainda lhe restava esperança de vida. E no fundo do seu ser havia beleza, confiava que sim. Bondade, amor. Aprendera de alguma forma, estavam lá. E isso era suficiente. Sabia que por trás do seu ser que definhava um diamante existira e, não entendera nunca porque, perdera a chance de ser lapidado. Também não tinha mais importância. Continuaria lutando. Não podia ousar querer mais.

Nenhum comentário: