segunda-feira, 24 de março de 2008

O Perseguido

Procurara de todas as maneiras livrar-se dela. Se soubesse o martírio que seria essa mulher na sua vida, jamais teriam sido namorados, nem um beijo sequer teria lhe dado. Isso porque foram somente alguns meses de convívio. E ela grudara-se nele qual sanguessuga, tornando a relação asfixiante. Para ele seria impossível conviver com uma pessoa assim. Não estava mais apaixonado, nem por ela nem por outra. Simplesmente não suportava sequer o som de sua voz. Aqueles modos de tentar agradá-lo a qualquer custo só serviam para afastá-lo. Sentia náuseas ao tê-la por perto. Parecia uma alucinada ao ouvir que ele não a queria mais. Tivera que jogar suas coisas porta afora, arrastá-la dali quase a pontapés. E a infeliz mesmo assim não desistira de querer voltar.

Um toque do telefone e lá vinham as lamentações, as súplicas, as juras de amor eterno, aquela ladainha infinita que o atormentava. Piores eram as vezes em que deparava-se com ela ao pé da porta pela manhã, dormindo sobre o capacho. Não sabia como ela conseguia driblar o porteiro, já dera ordens de não deixá-la subir de jeito algum e estava cansado de brigar com o homem por causa disso.

Como se não bastasse, volta e meia esbarrava com ela “por acaso”. Ah, claro, mera coincidência. Deviam ser coincidências também as cartas que recebia quase diariamente!

Só queria de volta seu sossego, poder estar só ou acompanhado como bem lhe aprouvesse. Nada! Ela sempre estava ali, seguindo-lhe os passos, assombrando-o em vida.

Quando o vira um dia com outra fora um escândalo. Nem uma esposa traída comportaria-se daquela forma. E sua companhia reagira com muita compostura, o que fez a outra humilhar-se ainda mais, ainda por cima em público. A pobre perdera totalmente o bom senso, a auto-estima ou seja lá o que for que toda mulher normal possuía. Ela já não era nenhuma garotinha, tinha idade suficiente para compreender uma simples palavra: acabou!

Por medonho que fosse, passaram-se anos e a perseguição continuava implacável. Insistia e continuava como se tivessem rompido no dia anterior. Ele já trocara a linha do telefone. Mudara-se. Mas ela sempre conseguia localizá-lo. Será que aquele tormento nunca teria fim?

Todos os seus amigos e até meros conhecidos já sabiam da história. Não havia como esconder, pois volta e meia lá estava ela. Chegava aos lugares em que ele ia antes dele! Outras vezes era como um cachorrinho que persegue o dono atrás de um afago qualquer.

Ele não era responsável por ela. Mandara-a freqüentemente procurar tratamento, um psiquiatra poderia ajudá-la, se Deus quisesse a internaria num hospício a quilômetros de distância.

Quando estava sem paciência (invariavelmente) mandava-a para o inferno, xingava-a... de nada adiantava.

Ele notara o quanto ela emagrecera, as fundas olheiras, o descaso com a própria aparência. Seria de dar pena se não fosse tão revoltante. Estava pagando os pecados que cometera e os que não cometera. Quem sabe um carma pesado que carregava? Ria-se da situação absurda em que se encontrava.

O único sentimento que ela conseguia despertar-lhe era desprezo, que logo se transformaria em indiferença.

Até que um dia percebeu-se livre. Cessaram os telefonemas angustiados, as cartas suplicantes, as aparições inconvenientes e os olhares apaixonados e magoados. Por fim, podia respirar aliviado. Acordar, ir tranqüilamente ao trabalho, sair com uma garota... ter uma vida normal. Às vezes achava que a qualquer momento ela surgiria, e começaria tudo novamente. Chegava a ter pesadelos com isso.

Porém, os dias transformaram-se em meses, passaram-se as estações, completou-se um ano sem sinal daquela mulher que havia sido sua pior tortura.

Foi aí que o inexplicável aconteceu. Ele estava sentindo saudades dela! Essa sensação começou de mansinho mas breve invadiu-o por completo. Sentia falta de tê-la por perto. Queria vê-la. Ansiava por tocá-la. Os pesadelos deram lugar a sonhos maravilhosos em que viviam e passeavam juntos. Sempre despertava deles com uma terrível sensação de vazio. Era muita ironia. Quisera tanto afastá-la, livrar-se dela e agora a queria para si. Não achava graça e nem suportava a companhia de nenhuma outra. E culpava-se seguidamente por não ter ao menos seu telefone, não saber de seu endereço, nada. Ela que sempre vigiara todos os seus passos... Tolo que fora, deixara-a sumir no espaço. Não tinha pista alguma. Interrogava os amigos, os novos e antigos conhecidos, ninguém sabia informá-lo de seu paradeiro.

Sabia que a encontraria. Buscaria incansavelmente por ela. Por todos os escaninhos do mundo. A vida não tinha o menor encanto sem ela. Seus dias tornaram-se completamente vazios.

Pensava em quão próximo estava do encontro enquanto observava suas próprias mãos marcadas pela idade avançada. Tinha plena convicção de achá-la. Absoluta certeza. Não havia a menor dúvida quanto a isso.

Foi com essa certeza no olhar que o enterraram. E ninguém reparou numa senhora alinhada de feições muito tristes que comparecera ao funeral. De tempos em tempos ela levaria flores ao túmulo daquele que fora seu único amor.






Realeza




A lassidão dominava. Tinha tudo. Como era bom. Podia fazer qualquer coisa. Todos o aclamavam. Era verdadeira adoração.

Os prazeres eram inúmeros. Não podia pensar em sua vida de outra forma. Nascera para gozar de toda a plenitude da existência. A fortuna lhe fora totalmente favorável. E isso seria eterno. Eterno. Palavra que soava maravilhosa. Ter o poder completo e irrestrito, ser inalcançável, absoluto, realmente era lindo. Ficar horas se divertindo e sempre com novidades.

As descobertas eram incríveis e ansiava por cada momento de uma forma tranqüila, pois sabia que estava correto, nunca falhara, não era de sua natureza. Sendo o ser divino, só reinava o êxtase e a magnitude.

Era infalível e por vezes implacável. Não tolerava mesquinharias, maldade, arrogância. Punia com toda a justiça que sua sabedoria proporcionava. Tinha como meta erradicar a falta de caráter, os desvios de conduta, a loucura, a doença... o mal, enfim. Era senhor do destino.

A morte por asfixia era a pena mais utilizada, seguida pelo cárcere perpétuo. Sentia muito orgulho de seu poder e atuar dessa forma era imensamente agradável. Não compreendia a dor, nem sequer aceitava que existisse. Era uma grande e tola mentira.

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