segunda-feira, 24 de março de 2008

Passagem

O sol mal tinha despontado. A julgar pela pressa com que se aboletavam nos trens, tinham medo de serem deixados para trás e perder a oportunidade. Não parava de chegar gente à estação. Assim que avistavam o trem, já se debatiam em busca do melhor lugar para a entrada. E numa barafunda de pernas e braços aquela multidão surarenta ia acotovelando-se até ocupar todo o espaço disponível. Havia toda sorte de gente. O barulho que faziam era tremendo. Choro de crianças, mulheres reclamando, velhos irritadiços, animais de estimação, tudo contribuia para tornar a situação quase insuportável. Não era longa a espera, pois após algum tempo da partida do trem, outro tomava seu lugar. E já lá estava um novo grupo, ansioso como o anterior. Vinham sem cessar, afoitos e esperançosos.

Em meio à confusão, um homem tentava fazer-se ouvir. Usava um terno elegante, gravata, sapatos lustrosos. Sua aparência era impecável. Parecia tratar-se de um jovem executivo, pois trazia uma pasta em uma das mãos. Ninguém lhe dava atenção, preocupados sempre em tomar o próximo trem. Isso não o desestimulava. Em pouco tempo estava aos berros. Parecia bastante decepcionado e incrédulo por suas palavras não serem levadas a sério. Mesmo assim continuava com seus uivos, tentando sobrepujar o estardalhaço provocado pela massa. Era constantemente empurrado por obstruir a passagem. Quanto mais desprezavam-no, maior era seu empenho. A pasta foi atirada em um transeunte, que não deu a menor importância aos papéis que espalharam-se por toda a parte.

O homem começou a perder sua bonita aparência. Aos poucos, foi ficando sujo e desgrenhado. Embora parecesse não perceber ou se importar, seu rosto já mostrava sinais de cansaço e desilusão. Contudo, continuava tentando. Conforme o tempo passava, acabou por ficar completamente imundo. Não bastasse, emagrecia a olhos vistos. Logo era pele e ossos, perambulando entre as gentes e gritando sempre.

Agora tocava as pessoas pois sua voz ia enfraquecendo. Isso só serviu para enfurecê-las. Com chutes, chacoalhões e empurrões, iam passando pelo então esquelético rapaz. Estava ali há horas e horas. Por fim, quedou-se esgotado. Dentro em pouco, as palavras tonaram-se susurros e sua respiração cessou totalmente.

As pessoas corriam por todos os lados, sem consciência do que havia acontecido, nem poderiam tê-la, pois inclusive já não era a mesma gente que passava. Muitos chutavam ou pisavam aquele débil corpo sem notar do que se tratava. Os poucos que percebiam afastavam-se com expressão de repulsa.

Somente uma mulher parou e olhou atentamente aquele rosto sem vida. Ela trazia um bebê nos braços, apertado contra o peito. A seu lado, um homem a puxava pela mão. Tentava arrastar a mulher dali, porém esta lhe entregou a criança e freneticamente começou a segurar e conter quem lhe caísse em mãos. O homem ainda insistiu. Não obteve qualquer reação e prosseguiu apertando o bebê contra o peito, exatamente da forma como ela o fizera antes.

A mulher a todo custo agarrava e segurava o primeiro passante que alcançasse e este, surpreso e furioso, só se libertava após uma pequena luta. Apesar da aparência frágil, a mulher mostrava-se forte o suficiente para brecar um após outro. E todos eram violentos à sua maneira, na ânsia de fugir daquela que os impedia de prosseguir. Na sucessão de tapas e bordoadas, ela continuava com maior furor. De leves arranhaduras passou a apresentar várias escoriações, que tornavam-se mais graves a cada vez que alguém se libertava. Lutou até seu corpo encher-se de extensas feridas disformes, com os cabelos ensanguentados colados à cabeça e o rosto cheio de hematomas. O sangue agora corria vívido e a mulher ainda manchava as roupas daqueles que conseguia alcançar, que fugiam apavorados e nauseados. Ajoelhou-se, ainda com o braço levantado. As pessoas atropelaram-se sobre aquela massa disforme e finalmente o coração da mulher parou de bater.

Todos passavam pelo corpo que ia sendo aos poucos dilacerado. Os trens continuavam a chegar e a partir, sempre lotados. E mais e mais pessoas chegavam à estação. Anoitecia.

Uma criança reparou na morta. Imediatamente seus olhos esbugalharam-se. Os irmãos ainda tentaram persuadi-la.

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